“Sobrevêm muitas ondas e fortes tempestades, mas não tememos afogar, pois estamos firmados sobre a pedra. Enfureça-se o mar, não tem forças para destruir a pedra. Ergam-se as vagas, não podem submergir o navio de Cristo.”
(São João Crisóstomo, Bispo)
Há pessoas que perdem as melhores oportunidades em suas vidas pelo simples fato de não saberem perceber os detalhes da vida sem tanta pressa. Um olhar verdadeiro sem tanta pressa tem o poder de curar uma alma ferida. Uma simples pergunta acompanhada de um olhar misericordioso faz-nos cair em choros de arrependimentos. As verdadeiras mães sabem disto quando fitam seu olhar em suas crias e percebem quando algo muda em seus comportamentos. O olhar é a porta de acesso para adentrar nos mistérios da alma e do coração.
O evangelista Lucas narra um episódio muito significativo acerca do olhar de Jesus diante da negação de Pedro. Depois de ter sido várias vezes interrogado acerca de sua amizade com aquele pobre condenado que se encontra em meios aos bofetões, Pedro afirmara por três vezes que não o conhecia. A narrativa tem o poder de remeter-nos diante da cena:
“[…] Passada quase uma hora, afirmava um outro: “Certamente também é Galileu”. Mas Pedro disse: “Meu amigo, não sei o que queres dizer”. E, o no mesmo instante, quando ainda falava, cantou o galo. Voltando-se o Senhor, olhou para Pedro. Então, Pedro se lembrou da palavra do Senhor: “Hoje, antes que o galo cante, tu me negarás três vezes”. Saiu dali e chorou amargamente.” (22, 59-62).
Nem sempre somos capazes de olhar nos olhos do outro porque estes têm o poder de revelar quem realmente somos. Pedro não olha para o Senhor quando o vai negar, justamente porque não tem a coragem o suficiente de encarar a si próprio nos olhos do Senhor. Jesus já fazia parte da vida de Pedro, mas Pedro ainda tinha medo de reconhecer a isto, não por vergonha, mas porque sabia que já não mais sabia viver sem este homem que revelou o amor de Deus. Ao deixar-se ser olhado por Jesus diante da negação, Pedro não cai aos pés do Senhor para lhe pedir perdão, mas corre para longe do Senhor com vergonha das palavras que ressoaram dos seus lábios. A negação se transforma em lágrimas de purificação. Negar o que verdadeiramente amamos nos faz cair em um abismo quase que sem fim. As negações de Pedro se transformarão em lágrimas de purificação, em arrependimentos, em medos e, por fim, em saudades do Senhor. Pedro já não sabe mais ficar ausente daquele que o ensinou a amar e andar pelas veias da esperança.
Ao passar pelas ruas e vielas, Jesus sente compaixão pelas pessoas desprezadas pela sociedade e pela religião de sua época, a terra prometida se transformara em terra de sofrimentos, o amor de Deus é compreendido agora como um amor distante das pessoas. O mistério que dá sentido à história do mundo e dos homens se perdera nas vielas dos medos e gritos de um povo sem esperança. Não fora Deus o culpado disto, mas o homem na sua ganância de poder e riqueza que fizera com que o sagrado fosse nivelado dia após dia nos corações destes. Diante de nossa liberdade até Deus se detém. Jesus é a mais plena personificação de Deus. Ele anuncia o amor de Deus por suas criaturas com os seus gestos e seu olhar, Ele passa pelas vidas das pessoas e deixa um pouco de si em cada uma delas. Não há como Deus passar por nossas vidas e permanecermos o mesmo. Deus é o anunciador de vidas novas.
No dia a dia nos deparamos com muitos olhares que podem nos ensinar muitas coisas, mas nossa pressa não nos deixa perceber a estes. Em nossas casas familiares gritam por socorro através de um olhar tristonho e penoso, mas não temos tempo de apercebermos a isto porque estamos ocupados demais nos nossos afazeres. Já não conseguimos mais nos sentar à mesa para partilharmos das nossas vidas com nossa própria família, o tempo se tornou lucro, o dinheiro se tornou o centro das atenções, os risos à mesa se tornaram secundários em nosso meio. Buscamos vida nova em roupagens velhas. Olhar nos olhos do outro, sem pressa, sem demora, nos faz perceber quanto este nos é importante e valioso. Deus contemplou as suas criaturas com amor profundo no alto de uma Cruz. Deus revela-se amando e não julgando. Talvez seja por isso que o seu coração fora transpassado, porque quem ama não tem nada a esconder.
A criança quando se perde da sua mãe em meio a uma multidão, sua primeira reação é chorar, justamente porque o seu olhar procurou e não encontrou alguém que lhe transmitisse confiança. Quando desviamos nosso olhar do olhar de Deus reagimos da mesma forma como esta criança: choramos. Chorar é a única forma que a criança tem de dizer que nada estar bem, que ela precisa de atenção, de cuidados. Muitas das vezes, reagimos como crianças perante Deus ao desviarmos o nosso olhar de seu Olhar, como bem afirma o Papa Emérito Bento XVI: “A iniciativa de Deus precede qualquer iniciativa do homem e, também no caminho para Ele, é Ele por primeiro quem nos ilumina, nos orienta e nos guia, respeitando sempre a nossa liberdade.” (2013, p. 17). Deus não nega aquilo que criou, não destrói o que criou por amor.
O olhar pode nos revelar um mistério que até então era-nos desconhecidos, pois as pessoas mais simples possuem esse dom. Nem sempre nos damos conta disto. Geralmente, as pessoas mais simples saem de casa com algumas horas antecipadas do horário previsto da missa, justamente no intuito de sentar em um lugar que lhe ajude a rezar e que lhe aproxime ainda mais de Deus. Quando chegam diante da Igreja, fazem questão de entrar pela porta principal, pois assim desejam um dia entrar no reino de Deus pela porta principal. Após essa liturgia, acorrem diretamente para o Santíssimo e lá ficam recitando suas orações e suas novenas. Mas, o mais interessante disso são os seus olhares para o Sagrado, ao mesmo tempo em que rezam, eles olham para o Santíssimo (ou para alguma imagem de algum santo, principalmente a de Nossa Senhora) com um olhar tão profundo que manifestam estar conversando com uma pessoa concreta diante de si. Uma oração acompanhada de um olhar confiante fazem os céus se abrirem diante dos nossos pedidos.
No tempo de provação e do sofrimento, a nossa atitude diante dos acontecimentos revela a consistência da nossa fé. Em meio ao enfrentamento da tribulação, amadurecemos o nosso jeito de compreender o amor de Deus e reconhecemos as nossas limitações e nossas fraquezas. Mesmo quando nos consideramos fortes demais diante dos sofrimentos e dificuldades que enfrentamos no dia a dia, sempre somos surpreendidos pela incredulidade. Se retornarmos o episódio de Pedro diante do olhar atrelador do Senhor, perceberemos que Pedro é questionado pelo seu desvio de olhar. As apalavras ditas pelo apóstolo se tornam um questionamento a si próprio. Somos verdadeiros quando somos capazes de olhar nos olhos do outro e abrirmos o nosso coração. Ao fixar o seu olhar nos olhos de Jesus, os olhos de Pedro gritam por perdão ao Senhor. Uma vez restabelecida a ordem nos ensinamentos do coração, nossos olhos são capacitados a encontrar Deus em tudo que nos acontece, inclusive nos momentos de perdão. O apóstolo Pedro é uma experiência disto.
No momento da retida da pessoa física de Jesus, Pedro e os discípulos ficaram cegos à presença de Jesus, esqueceram toda a história anterior e que haviam iniciado aquela viajem por causa de um convite de Jesus. Parece que uma enorme e densa cortina ocultou a figura de Jesus. Assustados com a violência da tribulação e da dispersão de todos, perderam a capacidade de perceber o simples e o óbvio em seus olhos. O mesmo acontece conosco: algumas vezes, perdemos a capacidades de enxergarmos a presença de Jesus em nossas vidas; outras, enxergamos uma realidade totalmente distorcida.
No meio da tribulação, uma vez perdida a capacidade de enxergar a presença do Senhor em nosso meio, somos invadidos pela insegurança e pelos sentimentos de limitações. Os discípulos são testemunhas disto, deixaram-se ser invadidos pelo medo por causa da ausência do Senhor, tudo o que fora vivido até então começara a ser esquecido aos poucos, a vida de todos voltara a sua rotina comum. Pedro volta a pescar, sua vida volta a ser rotina novamente, mas as lembranças que tem do Senhor não o deixam em paz. Quando ousamos caminhar longe do Senhor o coração começa a sentir saudades. Só se tem saudades do que realmente amamos. Saudades era a única palavra que Pedro alimentava em seu coração. Não aceitava que tudo aquilo que até então tinha sido vivido teria um ponto final, mas não sabia por onde começar, não tinha forças e ânimo para recomeçar. O medo falava mais alto no coração de Pedro. O senhor precisou refazer sua morada no coração do pescador, morada esta que será definitiva. Jesus se tornará definitivo na vida de Pedro.
Construir sobre Cristo e com Cristo significa construir sobre um fundamento que se chama amor crucificado. Pedro só entenderá a razão da ausência do Senhor quando contemplar as suas chagas abertas e seu coração transpassado de amor. Deus não tem nada a nos esconder, seu amor fora revelado de forma completa aos nossos olhos diante do madeiro. Pedro abrirá também o seu coração de forma completa no alto de um madeiro, pois compreenderá que somente Ele tem palavra de vida eterna (Jo 6, 68). Viver a própria fé como relação de amor com Cristo significa estar pronto para renunciar a tudo aquilo que constitui a negação do seu amor. Quem crê e ama se torna um construtor da “civilização do amor”, da qual Cristo é o centro, pois assim diz o Senhor: “[…] Porque és precioso aos meus olhos, porque eu te aprecio e te amo, permuto reinos por ti, entrego nações em troca de ti.” (Is 43, 4).
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Pe. Fabrício. Fortes na Tribulação. 16ª ed. São Paulo, SP: Editora Canção Nova, 2011.
Bíblia Ave Maria
BENTO XVI, Papa. Minha Herança Espiritual. São Paulo: Paulus, 2013.
Por: Adolfo Lima, Seminarista da Diocese de Crato