São Francisco, serafim do mais ardente amor

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“Vesti Cristo e tereis Francisco, desvesti Francisco e tereis Cristo.”

                                                                                   (Pe. Antônio Vieira)

 

Todos os anos, a inúmera Família Franciscana, espalhada pelo mundo inteiro, no mês de outubro, realiza o Festejo em honra a São Francisco das Chagas ou de Assis (usaremos a terminologia São Francisco das Chagas). Em cujo legado e mensagem nosso Pai Seráfico transcendeu o tempo cronológico e ressignifica a dinâmica do tempo kairológico, repleto da graça do Altíssimo! Deveras, a graça divina nos ‘reconecta’ a partir dos acontecimentos salvíficos da presença de Deus, que é amor sem limites, em cuja realidade Jesus Cristo realizou em suas catequeses e missão. ‘A vida se manifestou: nós a vimos, damos testemunho e vos anunciamos a Vida que estava junto do Pai e se manifestou a nós. O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos também a vós, para que partilheis nossa vida, como nós partilhamos com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo.’ (1Jo 1,2-3).

Para nós Franciscanos, este ano é de singular preparação espiritual. No próximo ano, vamos festejar 800 anos da impressão das Chagas de Nosso Senhor no corpo do Pai Seráfico. Este episódio das chagas aconteceu no verão em 17 de setembro de 1224, mais precisamente no Monte Alverne, dois anos antes de sua passagem para a eternidade feliz.

São Francisco viveu no seu tempo, contexto do século XIII, com fortes apelos de vaidade, tentação, modelos pervertidos e tantos outros. Porém, deixou-se encontrar e impactar por Deus. Aponta Atílio Abate (2002, p. 13-14) que: ‘A época de Francisco é marcada pela busca de prosperidade, de prestígio e de glórias. Esta busca desenfreada de bens materiais, de sempre acumular mais, incentivava a ganância. Esta, por sua vez, gerava a dominação, a exploração e a humilhação.’

É bem verdade, um santo não está desprovido de seu contexto de vivência local. Porém, pode ter outra postura que seja até de provocação, distanciamento ou testemunho focado em outra ótica que não leve em questão realidades que passam para interagir com valores que não passam. Eis uma fundamental diferença entre o servo medíocre (que se doa pela metade) em detrimento ao servo que conhece e interage com o autêntico Senhor! (identificação existencial e valorativa com o Mestre Jesus Cristo).

São muitas as facetas a partir das quais podemos ressaltar o testemunho cristão, humanizador e caritativo de São Francisco das Chagas que impactou e impacta a humanidade, independentemente de alguns crerem ou não, se é desta ou daquela prática religiosa. A vivência do bem comporta a linguagem universal de criatura repleta da bondade do Criador.

O nosso Festejo deste ano, ao lidar com a figura de São Francisco das Chagas enquanto serafim, é no sentido também de demonstrar a ‘transfiguração’ de São Francisco das Chagas, que atingiu grau notável de santidade, pois não mais estava escravo dos desejos, glórias e vaidades mundanas! Aponta Guimarães: ‘Nada mais a acrescentar. ‘Esses ferimentos eram bocas que falavam demais’. Por isso, o Poverello os escondia. Eram os segredos do Rei. Os serafins da Glória se encontravam com o serafim de Assis.’

A imagem de São Francisco, na qualidade de serafim do mais ardente amor, está ligada à realidade do Monte Alverne, que foi um dos lugares prediletos de São Francisco. O Monte Alverne era para o Santo de Assis um lugar de meditação, onde ele escutava no coração e na consciência as recomendações do Altíssimo. Lá, ele realizou diversos Retiros Espirituais e a Quaresma de São Miguel Arcanjo, além de redigir simples orientações para seus filhos espirituais.

Contava com o auxílio de Frei Leão, seu secretário e fiel companheiro de jornada, que ajudava São Francisco das Chagas a estar envolvido em solidão nos braços acolhedores de Deus através da meditação santificante.

Às vezes, podemos ter uma ideia hiper romantizada e inatingível sobre São Francisco. É de bom tom que estejamos despidos de tais posturas. Mesmo com o episódio dos estigmas em seu corpo, São Francisco não fez disso um espetáculo ou motivo de honra pessoal. Como se lê: ‘Na realidade, o venerável pai foi marcado em cinco partes do corpo com o sinal da paixão e da cruz, como se tivesse pendido na cruz com o Filho de Deus. Este mistério grande (cf. Ef 5,32) indica a grandeza da prerrogativa do amor; mas nele se esconde um desígnio secreto e se oculta um reverendo mistério, que cremos unicamente conhecido de Deus e revelado em parte a alguém pelo próprio santo’ (FONTES FRANCISCANAS, 2004, p. 259).

Cremos em tentar fazer o possível para testemunhar o Deus que amamos. Quando colaboramos frutuosamente com a graça de Deus, ela não nos falta, e podemos nos tornar virtuosos na humildade e no amor. Tudo isso é feito com corresponsabilidade na continuação dos valores que respaldam nosso seguimento a Cristo na imanência, enquanto não estamos na transcendência,  com Deus face a face.

Trata-se, antes, de a pessoa organizar a própria vida de modo que, no ambiente em que vive e no meio das pessoas com as quais convive, faça tudo o que estiver ao seu alcance para que os outros se sintam bem, vivam em paz, convivam prazerosamente e, sobretudo, sejam pessoas tão felizes, de modo que em seus rostos a alegria transpareça em todos os momentos. Trata-se, além disso, de enfrentar seriamente e com todas as consequências o sombrio problema do sofrimento no mundo, o problema da dor, da angústia e da tristeza imensa em que tantos seres humanos se veem mergulhados. (CASTILLO, 2012, p. 69).

Sobre o impacto pragmático da figura de São Francisco enquanto serafim do amor de Deus. Podemos fazer algumas indagações pessoais e comunitárias: suavizamos a vida de tantos que ainda não fizeram a experiência do amor de Deus? As pessoas que sofrem encontram em nós alento?

O Papa Francisco chama nossa atenção para que tenhamos a doçura e a proximidade do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), que mesmo ao lidar com o estrangeiro, foi capaz de ter compaixão. Fazendo-se de maneira altruísta e benevolente, ele foi um fiador. Lembremo-nos do simbolismo de nossa presença nos momentos mais difíceis das pessoas: crise de fé, cirurgia de risco, traição de amizade, situação dolorosa das etapas do luto, falta de perdão, sabotagem psicoemocional e outras.

O campo e as demandas pastorais colocam-nos em meio a que sejamos curadores de várias realidades que as pessoas passam e chegam até nós pedindo ajuda. Por meio da oração. Não somente para ouvir (ação meramente física e biológica), mas para escutar (ação que nos remete à empatia, presença, solidariedade junto às dores e alegrias das pessoas). Quantas vezes uma boa leitura nos ajuda a redimensionar aspectos de nossa vida que precisam de cura e sentido integrador.

Com frequência se fala do ‘poder curativo da leitura’. Todavia, esse poder tem um certo encanto pelo fato de não se poder prever os seus efeitos. Não se pode prescrever um texto, por melhor que seja, da mesma forma como se prescreve um medicamento, prevendo os seus efeitos. É preciso que a pessoa esteja aberta à sua mensagem num momento de particular receptividade para que ele possa exercer o seu poder de cura. E nesse caso, podem acontecer coisas surpreendentes: começam a brotar fontes de uma vida cheia de sentido. (LUKAS, 2002, p. 76).

Como é bom quando tomamos posse de leituras construtivas, sobretudo na abertura humilde e com sentido, no que diz respeito a alimentar nossa mente e coração para meditarmos não só sobre a vida dos Santos, mas também sobre a nossa, enquanto itinerário de retorno aos braços acolhedores de Nosso Senhor!

Precisamos deixar a vida valer a pena ser vivida, com suas intempéries e resiliências. Não estamos sozinhos nessa travessia! Que o bom Deus, através de São Francisco das Chagas, nos ajude a carregar nossas cruzes e a aliviar o fardo de tantos irmãos e irmãs que precisam da nossa presença, serviço e companheirismo. Assim seja, amém!

Referências

  • ABATI, Frei Atílio. Francisco: um encanto de vida. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.
  • Bíblia do Peregrino Novo Testamento. 2ª edição. São Paulo: Paulus, 2000.
  • CASTILLO, José M. Espiritualidade para insatisfeitos. Tradução José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2012.
  • Fontes Franciscanas. Tradução: Celso Márcio Teixeira [et. al.]. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2004.
  • GUIMARÃES, Frei Almir Ribeiro. O serafim de Assis. Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil – OFM. Disponível em: Https://franciscanos.org.br/carisma/o-serafim-de-assis.html#gsc.tab=0. Visualizado em 28 de setembro de 2023.
  • LUKAS, Elisabeth. Psicologia espiritual: fontes de uma vida plena de sentido. Tradução: Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 2002. (Psicologia prática)
  • MANSELLI, Raoul. São Francisco. Tradução: Frei Celso Márcio Teixeira. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1997.
Sobre o autor:

GILBERTO SIQUEIRA ALVES, OFMCap - Frade Capuchinho e Presbítero da Província São Francisco das Chagas do CE-PI. Atualmente, Vigário Paroquial na Paróquia São Francisco das Chagas e Administrador do Centro de Romeiros São Francisco em Juazeiro do Norte-CE; Fazendo o Curso de Conciliador/Mediador Judicial pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará; Acadêmico de Direito Centro Universitário Maurício de Nassau (UNINASSAU); Pós-Graduando em Psicopedagogia Clínica e Institucional - Faculdade Plus (FAP); Pós-Graduado em Gestão, Coordenação e Supervisão Educacional - Faculdade Plus (FAP); Pedagogia Catequética - Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO); Acompanhamento Espiritual Franciscano - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF); Docência do Ensino Fund., Médio e Superior - Faculdade Montenegro (FAM); Licenciatura em Filosofia - Faculdade Evangélica do Meio Norte (FAEME); Bacharelado em Teologia - Faculdade Católica de Fortaleza (FACAP). Publicou os livros: A pedagogia da Iniciação Cristã com Adultos (Editora Nova Aliança); Itinerário Catecumenal e Maturidade Cristã (Editora Vozes). Têm Artigos Científicos publicados.
[1] “Frei Leão, entre os primeiros companheiros do santo, foi também um dos que o assistiam e o ajudaram nos últimos anos e de quem já dissemos: amou o seu mestre e fundador com uma dedicação, um respeito, um senso da verdade e, ao mesmo tempo, com uma firmeza que, mesmo através das dificuldades sucessivas da Ordem – que ele teve tempo de conhecer, por estar morto depois de 1278 -, soube manter, obtendo sempre o máximo respeito.” (MANSELLI, 1997, p. 304)

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