“A 13 de maio…” não na Cova da Iria (Portugal), mas no povoado Lagoa dos Crioulos (Brasil), localizado em Salitre, no Cariri Oeste do Ceará, a 109 quilômetros da cidade sede da diocese de Crato, no céu, ao nascer do sol aparecia uma nova esperança que reluzia no povo quilombola. Era o raiar do encerramento da festa da Mãe Aparecida dos Crioulos de 2017.
A data e a padroeira da comunidade não foram escolhidas por acaso. É que em 13 de maio 1888, quando o Brasil ainda vivia o regime monárquico, a princesa Izabel assinou a Lei Área, “abolindo” o sistema de escravidão. Os negros a partir dali seriam tratados como gente e não mais como objetos de seus senhores, ou ao menos deveriam serem tratados assim.

A palavra abolição no parágrafo anterior está entre aspas de forma proposital, pois o que se percebe ao longo passar dos anos é que o processo de abolição da escravatura foi inacabado tornando o preconceito racial algo estrutural. A assinatura da lei áurea não trouxe a garantia de reversão das desigualdades que foram geradas na escravidão e que se aprofundam no capitalismo racista. Quem explica melhor isso pra gente é Zelma Madeira, Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Estado, que esteve hoje na Lagoa dos Crioulos. Segundo ela “a abolição foi inacabada porque saímos uma população nega escravizada, sem nenhum direito, sem nenhuma política de ação afirmativa que nós já queríamos daquela época. Por isso estamos nesse abismo, nessa distância dessa desigualdade racial porque nada foi feito no momento necessário. Então hoje quando falamos do 13 de maio, falamos de uma abolição inacabada. A gente questiona essa data no sentido de refletir, da necessidade de implementação de políticas públicas, de acesso aos direitos para essas comunidades que tem seus direitos negados e que algumas leis que conseguimos estão sendo atacadas”.
Sim, a festa da Mãe Aparecida dos Crioulos, celebrada há nove anos, tornou-se um espaço de reflexão sobre o lugar de desvantagem que o povo negro ocupa, marcado pela discriminação e desigualdades, mas acima de tudo o evento propõe a conscientização de que manter a comunidade unida e organizada é o início da luta pela inversão desse cenário, por isso durante a programação do dia que iniciou com um café da manhã comunitário e teve, ao final da tarde a celebração da Santa Missa presidida pelo padre José Vicente dos Santos, administrador da Paróquia São Francisco de Assis, foram realizadas também plenárias com a juventude sobre as reformas da previdência e trabalhista, o cinedebate com o mapeamento das comunidades quilombolas no Cariri, oficina de turbantes e é claro, várias homenagens à padroeira do Brasil.

Sobre a padroeira você pode estar lembrando nesse momento que no mês mariano, o dia 13, quem é festejada é Nossa Senhora de Fátima, inclusive hoje no Vaticano o Papa Francisco canonizou os pastorinhos Francisco e Jacinta, mas para as comunidades quilombolas dessa região, a Mãe Aparecida, a mulher negra que há 300 anos foi encontrada no Rio Paraíba do Sul, é quem abençoa os projetos de vida e resistência desse povo. Mas quanto a isso não se preocupe, pois como diz a canção de Roberto Carlos “todas as Nossas Senhoras são a mesma Mãe de Deus”, o que muda é apenas os títulos que são dados a ela.
Festa e participação
Não só os moradores da Lagoa dos Crioulos participaram da festividade. As demais comunidades quilombolas da região estiveram presentes e fizeram a celebração ficar ainda mais bonita. Representações do poder público municipal e estadual também participaram e, no momento de partilha, puderam escutar quais as necessidades urgentes.

“A festa anima e conscientiza as pessoas, pois ainda temos membros da comunidade que temos que trabalhar a questão da igualdade, de se aceitar como quilombola. No início ninguém aceitava nem a festa, nem a comunidade”, relatou Silvana Terezinha da Silva, presidenta da Associação Renascer de Quilombola Lagoa dos Crioulos.
Essa celebração atrai não só as comunidades vizinhas. Por exemplo, o estudante do curso de geografia da Universidade Regional do Cariri, Joedson Nascimento, acordou de madrugada e enfrentou três horas de estrada, saindo de Crato, para chegar cedo à Lagoa dos Crioulos. E o que motivou o acadêmico a vivenciar essa experiência? Bom, além da curiosidade, foi a vontade de aprender mais sobre a vida desse povo.

Joedson veio acompanhado de outros universitários e pela professora do curso de pedagogia da mesma universidade, Cícera Nunes, todos em busca de uma educação contextualizada. “Vir na comunidade é uma possibilidade de conhecer concretamente a realidade dessas pessoas, conhecer como elas se organizam, como dialogam com essa cosmovisão da vida de todos nós que muitas vezes o ambiente acadêmico nos distancia. É a possibilidade real de convivência com esse universo”, disse a professora.
Lagoa dos Crioulos, uma comunidade quilombola
Cerca de 320 famílias residem nessa comunidade quilombola, que é uma das seis acompanhadas pela Cáritas da diocese de Crato, sobrevivendo de uma economia totalmente agrícola, em especial pelo plantio de feijão, milho e mandioca.

Para se reconhecer uma comunidade quilombola, explica Verônica Carvalho, agente Cáritas, primeiramente se nota o sentimento de pertença a terra, “a terra é deles e eles são da terra independente de qualquer papel”, depois pelo parentesco com consanguinidade muito próxima, “todo mundo é parente dentro de uma comunidade”, e depois pelo histórico de opressão e violências que esse povo sofre.
“Com muita alegria a gente celebra essa festa que se difere de todo o mundo. É a Nossa Senhora que apareceu na comunidade dando um novo sentido a essa comunidade e como uma delas diz: ‘Nossa Senhora quis ser nossa parenta’. É uma satisfação participar desse momento porque entendemos que nossa missão enquanto Cáritas é testemunhar o evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, promovendo a vida e a vida dos mais pobres. Jesus Cristo tinha preferência pelos pobres”, concluiu Verônica.





