LIBERDADE E DISCERNIMENTO PARA AMADURECER A FÉ
“É permitido em dia de sábado fazer o bem ou fazer o mal, salvar uma vida ou deixá-la perecer?” (Mc. 3,5)
A liturgia da Palavra deste Domingo ao fazer memória da ação criadora e redentora de Deus e lhe dedicar um dia, tanto no Antigo Testamento (o sábado para os judeus) quanto no Novo Testamento (o domingo para os cristãos), convida-nos a refletir sobre a importância de um dia dedicado ao Senhor e como devemos santificá-lo em meio a uma sociedade hodierna cada vez mais isenta ou insensível aos apelos do sagrado.
Na primeira leitura (Dt. 5,12-15) o livro do Deuteronômio reproduzindo de modo resumido o que Ex. 31,13-17 e Ex. 20,8-11 já haviam anunciado, apresenta o mandamento do Dia do Senhor, uma orientação didática/pedagógica de como ele deve ser observado e a sua justificação por meio de uma fundamentação teológica. Este mandamento geralmente possui dois argumentos: o sábado com o repouso de Deus na conclusão da obra da criação (Gn. 2,1-4) e como obrigação de repouso em memória do acontecimento da libertação do Egito (Dt. 5,15). Como memorial da experiência que fundou a fé israelita, o mandamento surge como símbolo dos deveres que o povo assumiu perante o seu Deus libertador e que deseja que todos façam a mesma experiência de libertação. Deste modo, o Dia do Senhor impera com forte apelo social, pois surge como dia de descanso para todos, garantindo esse direito, sobretudo aos pobres que se veem assim protegidos pela Lei divina que impede que sejam explorados.
A segunda leitura (2Cor.4,6-11) apresenta-nos um trecho do famoso discurso que o Apóstolo Paulo fez em sua própria defesa quando começaram a surgir acusações e calúnias ao seu ministério. Apesar disto, Paulo não escreve com vitimismo ou intenção de usurpar o protagonismo que pertence a Cristo, pelo contrário, ele escreve revelando que o sofrimento vivenciado demonstra que seu ministério não é fruto da vontade humana, mas sim, da vontade divina e que o identifica cada dia mais com os sofrimentos experimentados pelo próprio Jesus Cristo. Aqui, o Apóstolo utiliza-se de uma das suas mais belas alegorias: o vaso de barro que porta um tesouro. Paulo sabe que como homem possui imensa fragilidade, mas ele entende que esta sua fragilidade não impediu Deus de confiar a ele a missão de evangelizar todos os povos. Como situar o texto na temática do descanso do Dia do Senhor? Mesmo que a missão seja constituída de muitos sofrimentos e dificuldades, haverá sempre momentos de “refrigério” junto a graça consoladora. Momentos estes que são apenas um pequeno indicativo do “grande descanso” que espera o missionário que persevera de modo responsável nas tarefas que seu chamado exige (1Cor.2,9). Pois, mesmo se sentindo muitas vezes oprimido, esmagado, perplexo, desesperado, perseguido, abandonado e abatido, aquele que fundamenta seu ministério e missão na rocha firme que é Cristo, jamais sairá aniquilado.
O Evangelho (Mc.2,23–3,6), nos apresenta uma polêmica de Jesus com os fariseus nascida no ato dos apóstolos debulharem espigas de trigo para saciar a fome em dia de sábado e que culmina na cura da mão atrofiada de um homem. O episódio nos mostra a comunidade em um momento de pausa restauradora da missão, e manifesta que um momento de convívio fraterno pode se tornar uma contenda quando se vive mergulhado no rigorismo fundamentalista que sufoca a fé.
Os preceitos acerca da observância do Dia do Senhor foram muito importantes para o povo de Israel manter sua fidelidade a Aliança quando estavam impedidos de celebrar e oferecer sacrifícios no exílio. Nos seus primórdios, as normas da Lei visavam impedir que os patrões explorassem o trabalho dos seus empregados e escravos a ponto de subjugá-los. As orientações buscavam evitar que o trabalho remunerado que fosse considerado mais importante do que progredir na fé e na intimidade com Deus. No entanto, com o avançar dos séculos, a interpretação rigorista das prescrições da Lei tornou tudo um mero ato escrupuloso que impede de conhecer e compreender a essência da lei e da fé. Para termos uma ideia, ainda hoje os judeus não podem, no dia de sábado, tocar em qualquer instrumento que simbolize trabalho, acender fogo, preparar ou cozinhar alimentos, tocar instrumentos musicais ou praticar esportes. Tudo isto como resultado de uma interpretação fundamentalista da lei. O Dia do Senhor que deveria ser um dia de descanso das tensões e angústias cotidianas pode se tornar um fardo por causa do sentimento gerado pelo medo de ofender a Deus pelo simples gesto de tocar em um objeto.
Com as suas atitudes, evidentemente, Jesus não está desvalorizando o sábado (Mt. 5,17s). Com a sua família, ele cresceu vivenciando os ritos (Lc. 2,41), celebrou todos os anos as solenidades com os seus discípulos (Mt. 21,1-9). Sua liberdade diante dos preceitos da lei é, na verdade, um convite a vivermos não do preceito da letra fria, mas da Lei que assumimos em verdade no nosso coração. E provavelmente uma das melhores maneiras de honrar e santificar o Dia do Senhor é fazer o bem como Jesus demonstrou na cura da mão atrofiada que impedia o homem de trabalhar e viver com dignidade.
Ao curar – em dia de sábado – o homem que tinha a mão atrofiada, Jesus realiza o propósito original do dia do Senhor: preservar a dignidade de alguém. A cura deste homem realizada em dia de sábado representa uma nova criação como símbolo para a nova e definitiva criação que será realizada no novo Dia do Senhor (Domingo/Ressurreição). Por isto, os primeiros cristãos rapidamente entenderam que o Dia do Senhor (Dies Domini – Domingo) era uma pausa restauradora em meio a labuta e agitação semanal para ganhar o pão cotidiano e que precisava ser vivenciado como experiência vivificadora diante de Deus. Diz a Didaqué: “Não ponhais os vossos assuntos temporais acima da palavra de Deus, antes, abandonando tudo no dia do Senhor para ouvir a Palavra de Deus, correi com diligência às vossas igrejas, pois nisso se manifesta o vosso louvor a Deus. Que desculpa terão diante de Deus os que não se reúnem no dia do Senhor para ouvir a palavra de Deus e alimentar-se com o alimento divino que permanece eternamente?” (Cf. Didaqué, ll, 59, 2-3).
Numa sociedade cada vez mais dessacralizada, para que se alcance a evangelização do mundo, é particularmente urgente realizar um apostolado eficaz a respeito da santificação do domingo, de modo que a piedade penetre no coração das famílias. No entardecer do século passado o Papa Pio XII nos lembrou que o domingo é ocasião para descansar em Deus, para louvar e adorar, suplicar e agradecer, pedir perdão pelos atos maldizentes da semana que passou e pedir-lhe a graça santificadora para a nova semana. É momento propício também para voltar o coração à família, aos amigos, a todos que o Senhor nos confia.
Em suma, o dia isento do trabalho deve ser usado não apenas para descansar o corpo, mas também o coração, pois como nos ensina Santo Agostinho, “nós fomos feitos para Deus e nosso coração permanecerá inquieto enquanto não descansar n’Ele”. (Confissões L. 1,1,1).
Pe. Paulo Sérgio Silva.
Diocese do Crato.