“Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm. 5,5)
A Palavra de Deus deste domingo nos convida a ter a convicção de que Deus é a fonte de todo Bem e somente por Ele e Nele poderemos encontrar a paz e a vida plena.
Durante esta peregrinação quaresmal a primeira leitura tem nos oferecido um amplo horizonte contemplativo das origens da história da salvação como uma janela sendo aberta para o passado de nossa fé. Já vislumbramos atemorizados – nas figuras de Adão e Eva – a cena do pecado original que culminou no afastamento de Deus. Contemplamos esperançosos – através da obediência e confiança de Abraão – a iniciativa divina para reaproximar-se da humanidade. E hoje no Livro do Êxodo (Ex. 17,3-7) – numa imagem tipificada – enxergamos na ingratidão de Israel e na pedagógica paciência de Deus, o próprio caminho de nossa história pessoal.
A cena narrada faz parte do conjunto de narrações e acontecimentos que apresentam as tribulações enfrentadas pelo Povo Eleito em sua caminhada em busca de sua identidade enquanto o Senhor os conduz à libertação. Em diversos momentos o livro do Êxodo apresentou cenas que manifestam o empenho de Deus para conduzir seu povo a salvação. Podemos citar o episódio da nuvem e do fogo (Ex. 13, 20-22); a passagem do mar (Ex. 14,15-31), a água amarga transformada em água doce (Ex. 15,22-27), o maná e as codornizes (Ex. 16,1-20). Diante disto, Israel já devia acreditar plenamente na vontade salvadora de Deus e em sua libertação. Todavia, não é o que se descortina ante nossos olhos. Diante da causalidade mais comum no deserto – a sede – Israel cai em desespero e revolta devido a sua falta de confiança no Senhor que os acompanha. O povo esquece todos sinais de vida e liberdade que foram oferecidos e acusam Deus de arquitetar um plano funesto para os matar no deserto. Diante da ingratidão, Deus responde com paciência e benevolência milagrosas que fazem brotar água de lugar improvável: uma rocha. O povo eleito ainda tem um longo caminho espiritual até alcançar seu objetivo da peregrinação no deserto: confiar em Deus e a entregar-se em suas mãos. Do mesmo modo nós também agimos. Afinal quantas vezes duvidamos e indagamos no silêncio de nosso coração se o Senhor está conosco em nossa história pessoal?
Na segunda leitura (Rm. 5,1-2.5-8) acompanhamos São Paulo apresentando sua teologia da “Justificação pela Graça” para os membros da comunidade de Roma que ainda viviam sob a ótica legalista dos judeus. Muito embora não aparente, o ensinamento dado aqui é uma continuação do que ouvimos na primeira leitura. Para o Apóstolo assim como Deus ofereceu a água saída de uma rocha a todo o povo eleito – para os bons e maus – apesar dos atos pecaminosos e infidelidade histórica da humanidade, Deus permanece oferecendo gratuita e incondicionalmente a todos a salvação.
Quando Paulo fala em Justiça, ele não está se referindo no conceito filosófico que embasa o direito romano, mas, sim ao conceito relacional bíblico que é fruto da caminhada histórica de um povo de fé. Portanto, para o Apóstolo, isto significa que Deus não age como um juiz humano consultando seus volumosos livros jurídicos cada vez que o homem desobedece aos mandamentos. Se Deus agiu com paciência, benevolência e misericórdia com o Povo Eleito mesmo quando eles lhes foram infiéis no A.T., Ele agirá sempre do mesmo modo com o ser humano em todas as condições históricas mesmo quando o homem escolhe agir mal. Ao contrário do que pensavam muitos fariseus contemporâneos a Jesus, não sãos os atos ou méritos que “compram” o direito a graça divina, pois o próprio Jesus já havia explicado isto quando disse aos discípulos que o Pai faz nascer o sol sobre os bons e os maus (Mt.5,43-48). À humanidade é pedido aquilo que foi pedido ao povo na travessia do deserto: que acolha, com humildade e confiança, uma graça que não depende dos seus méritos e que se entregue integralmente nas mãos de Deus. Por isto, seu Filho, Jesus Cristo, se manifesta como um novo e inigualável modo de relacionar-se com Deus, pois assim como a água jorrou de uma rocha, Nele e com Ele o “amor de Deus” foi derramado, não sobre o chão do deserto, e sim no coração humano.
No Evangelho (Jo. 4,5-42) o evangelista João também oferece sua narração do encontro de um Deus que parte em busca do seu povo e o encontra em meio a um lugar inóspito e hostil não por falta de água, mas por carência de amor e compaixão. A sensibilidade com que o evangelista descreve a cena do encontro de Jesus com a Samaritana tem cativado gerações de teólogos que ao longo das eras têm se debruçado sobre este diálogo embevecedor. Se colocando como mediador da paz para os judeus e os samaritanos, Jesus estabelece um diálogo com aquela mulher cuja vida desregrada representa a mistura cultural que paganizou a Samaria. Do diálogo nasce a mútua compreensão que aproxima o que o legalismo religioso havia afastado. No diálogo, Jesus se revela de um modo que Ele até então nunca havia feito: Ele é o Messias, Ele é a fonte de água viva.
Se trata de catequese densa em simbolismo como tudo que João escreveu, mesmo que apareçam apenas três protagonistas na cena: o Poço, Jesus e a Samaritana. Qual o seu objetivo? Apresentar o caminho que conduz a vida plena. Mas, neste mundo estéril e incapaz de gerar vida verdadeira, onde encontrar esta vida plena? Na Lei? Nos deuses mitológicos? Na guerra? Na divisão?
O Poço. Por que o evangelista o escolhe como cenário para este encontro? Porque sua imagem recorda os poços abertos pelos patriarcas e a água que Moisés fez brotar da rocha no deserto. Ele é o “poço de Jacó”, lugar onde o patriarca encontrou sua esposa, Raquel (Gn. 29, 1-11). Com o passar dos séculos o poço tornou-se também imagem da Lei – instância onde tanto os judeus quantos os samaritanos buscavam uma vida plena. No entanto, condições históricas fizeram os samaritanos perceber a insuficiência da “água” servida pela Lei e eles acabaram buscando vida plena junto a outros “poços” (os deuses pagãos que são representados pelos cinco maridos da samaritana). O evangelista coloca Jesus “junto ao poço” como que querendo ocupar o seu lugar para que a samaritana possa receber a água que pode saciar sua sede de vida plena.
Jesus Cristo, o Messias: É um Deus que sempre se ofereceu em graça incondicional e que agora “pede” água para poder aproximar-se de uma humanidade que o rejeitou por crer nas seduções do maligno. Como no A.T, Jesus encontra a samaritana “num lugar de solidão desoladora” (Dt. 32,10). Que água é esta que Ele tem a oferecer para esta humanidade que já cavou tantos poços ao longo da história? É a “água do Espírito” que, no Evangelho de João, é o grande dom de Deus que vem em plenitude com Jesus. No diálogo com Nicodemos, Ele afirma ser a água e o Espírito necessários para entrar no Reino de Deus (Jo. 3, 1-15) e também se apresenta como “água viva” que saciará a sede da humanidade (Jo. 7, 37-39) e ao morrer, será traspassado por uma lança e do seu lado sairão sangue e água (Jo. 19,34). No A.T. Deus oferece água em meio ao deserto. No N.T. é o próprio Deus quem se oferece em meio a vida desértica que aquela samaritana levava. Jesus encontra a samaritana ao meio dia, no mesmo horário em que ele depois iniciará sua paixão e morte.
A Samaritana: Ela possui raízes fincadas no Povo Eleito, mas seu “povo” samaritano afastou-se da Aliança. No deserto, mesmo tendo a permanente companhia do Senhor, o povo eleito age com constante desconfiança e ingratidão. A mulher e os demais samaritanos que vivem longe da “cidade de Deus” o acolhem com gratidão. Adão e Eva, no Éden, se afastam de Deus ao ouvirem e acreditarem na mentira, aqui a mulher, em lugar deserto, aproxima-se de Deus por ouvir sua Verdade pessoal e histórica. Conforme a primeira leitura, cegos, pela fúria e ingratidão, o povo de Israel não reconhece a presença do Senhor no seu meio. Os Samaritanos considerados “impuros”, reconhecem o Messias graças ao anúncio de uma mulher que como Eva, devido à sua vida desregrada, por muitos concidadãos foi considerada a raiz do pecado. É esta mulher que se tornará modelo de conversão e ação missionária para todos os cristãos no futuro.
A mulher, como todos nós, mesmo sem perceber está presa ao legalismo cultural e territorial. Ela deseja encontrar a Deus, no entanto não sabe ao certo onde buscá-lo: no Templo de Jerusalém? No Templo do Monte Garizim? Eis a grande novidade que Jesus apresenta na relação com Deus. Não se trata de um lugar físico externo, mas interno. O verdadeiro lugar para adorar e prestar culto ao Pai é o coração humano, pois é lá que se adora em “espírito e verdade”. (Jo. 4, 22-23). Esta mudança exige também uma nova relação com o próximo, capaz de derrubar as barreiras entre judeus e samaritanos. Na verdade, a partir de Jesus, todos os povos poderão adorar a Deus não com rituais fixados pela rigidez legalista, mas “em espírito e verdade”.
Na reação da mulher, no seu arroubo missionário que transforma ela e toda a sua cidade compreendemos que quem acolhe o dom de Deus e aceita Jesus como “o salvador do mundo” toma parte desta Humanidade Nova, que vive do Espírito e que caminha ao encontro da vida plena e definitiva.
Pe. Paulo Sérgio Silva
Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Farias Brito.