SANTIDADE: A VOCAÇÃO COMUM A TODOS OS FILHOS DE DEUS
“Vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas”. (Ap. 7,9)
Amados irmãos e amadas irmãs!
Na casa do meu avô, lar onde fui criado, catequizado e evangelizado, vivi rodeado de Bíblias, imagens sacras de santos, terços, rosários, livros de catequese e de teologia. Dentre tantos livros, um livro em especial sempre me acompanhou e foi meu companheiro diário ao lado da Bíblia. Era um livro já amarelado pelo uso cotidiano e pelo tempo. Ele se chamava “Um Santo Para Cada Dia”. Este livro reunia algumas das biografias dos inúmeros santos que a fé católica viu brotar em sua jornada de anúncio do Evangelho ao longo destes dois mil anos de história do cristianismo e de história da Igreja. Este livro me fez perceber que a santidade ou a santificação não era algo que um grupo privilegiado tinha recebido de Deus como um benefício especial. Os relatos biográficos dos santos me fizeram percebê-los como pessoas comuns que depositaram sua confiança na misericórdia divina e se mantiveram incólumes no desejo de caminhar ao lado de Jesus Cristo permanecendo firmes nesta convicção, mesmo em meio as inconstâncias da vida diária que muitas vezes nos levam a oscilar entre momentos de alegria e profunda tristeza, esperança e desespero, fé inabalável e fragilidade de fé.
A liturgia da Palavra desta solenidade, celebrada em meio ao Dia do Senhor, deseja nos lembrar que a santidade não é um privilégio de alguns, mas sim a vocação comum a todos os seres humanos. Numa só festa, lembramos todos àqueles que abraçaram a fé e vivenciaram em suas vidas as Bem-aventuranças anunciadas por Jesus no Sermão da Montanha e, que não tiveram medo de alvejar suas vestes no sangue do Cordeiro, como nos fala a leitura do Livro do Apocalipse. Ao mesmo tempo que nos regozijamos com os nossos irmãos que já estão na glória sentimos a comunhão que nos une não apenas com todos que foram batizados em Cristo, mas também com aqueles homens do Antigo Testamento que hoje contemplam a presença de Deus no céu.
Para além das imagens que podem suscitar uma boa interpretação teológica, a primeira leitura retirada do Livro do Apocalipse (Ap. 7,2-4.9-14), nos apresenta a esperança concretizada. João vê a santidade que foi plantada, regada, frutificada e colhida ao longo da história da salvação. As situações concretas da vida cotidiana são, às vezes, carregadas de sofrimento. Feliz é quem permanece fiel em momentos de angústia, de perseguição e crise. Em linguagem apocalíptica, feliz é quem alveja suas vestes no sangue do Cordeiro. Essa expressão significa assumir a veste nova do batismo em situação de perseguição, sofrimento e martírio, a ponto de se identificar com o Cristo crucificado. Os santos são aqueles cuja consciência de pertença a Cristo é tão forte, que os leva a tudo realizar por amor a Deus. O que alimenta as suas ações é o amor; o mesmo amor oblativo que moveu Jesus Cristo na oferta da própria vida na Cruz. Os membros desta inumerável multidão não estão mortos, mas vivos. Não são membros de um grupo fechado e elitista. Pertencem não somente a todas as nações, tribos, povos e línguas, como ainda a todas as religiões e confissões. Cada qual escutou, na vida, o apelo das Bem-aventuranças. Cada qual, segundo a sua vida e à sua maneira, respondeu ao convite do Senhor. Podemos dizer que no Dia de Todos os Santos, a Igreja apresenta a humanidade reunida na unidade.
Por isto, na segunda leitura (1Jo. 3,1-3), ao escrever para uma de suas comunidades, o mesmo São João, lembra aos seus membros e fiéis que pela filiação divina todos recebemos a mesma vocação. O chamado de revelar ao mundo a santidade de Deus através de nossa própria santificação. Para João, se Deus, no seu imenso amor, faz de nós seus filhos, não nos pode abandonar. Por isto, em Jesus e na sua Ressurreição, contemplamos já o futuro de todos que pertencem à família divina: seremos semelhantes a Ele.
Mas como alcançar a santidade? As bem-aventuranças apresentadas hoje no Evangelho (Mt. 5,1-12a) são como que um “programa” a ser seguido para quem almeja alcançar a coroa da santidade. Elas são um caminho de benevolência que sintetiza o rosto do testemunho e do testamento espiritual do próprio Jesus de Nazaré. Pois, Ele, Cristo, é a fonte da santidade dos cristãos. As Bem-aventuranças foram primeiramente vividas por Jesus e, por isso, Ele se tornou o critério pelo qual discernimos se estamos vivendo ou não de acordo com a vontade de Deus. Por isto, as Bem-aventuranças representam uma vida ética que, quando vivida com seriedade, é capaz de renovar as pessoas e transformar a sociedade, como o demonstra a vida de todos os santos.
Aos olhos do mundo hedonista, materialista, egoísta e que lucra com a guerra e a morte – e agora também com a mentira /notícia falsa –, ser pobre, manso, pacífico, suportar o sofrimento, privações e perseguições, ter fome e sede de justiça e ser defensor da paz, etc. não parece ser algo nobre ou admirável. Todavia, Jesus, pelo contrário, os proclama felizes. Ele os consola, os alimenta, chama-os de filhos de Deus, e os faz participantes do seu Reino.
A primeira e a última Bem-aventurança por estarem regidas por verbos no tempo presente simbolizam algo que já foi alcançado e que pertence a quem as vive (“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus” e “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus”). Elas alimentam a esperança e a perseverança de quem vive as outras Bem-aventuranças que estão regidas pelos verbos no tempo futuro. Para Jesus, a pobreza não é apena uma situação econômico-social, mas também um valor religioso. Pobre é quem se apresenta diante de Deus com humildade, sem méritos pessoais, considerando a sua realidade de pecador, e, portanto, necessitado da misericórdia e do perdão divinos para ser salvo. Os que são perseguidos por causa da justiça, buscam uma sociedade diferente através da partilha e da solidariedade e, portanto, com melhores condições de vida para todos. Os que são perseguidos por causa da justiça são os mesmos pobres em espírito, pois ambos estão abertos para participar do projeto de Deus que é a construção da nova humanidade, baseada na justiça e na igualdade. E isso é o Reino de Deus.
Viver a santidade ou a bem-aventurança é um desafio para almas fortes e generosas. Afinal, não é fácil ser pobre em espírito e no coração em um mundo que glorifica o poder, o ter e o domínio sobre os outros. Ser manso em um mundo agressivo e violento; ter e manter o coração puro diante da corrupção, luxúria e da ganância, buscar alcançar a paz enquanto tantos outros no mundo declaram a guerra.
Contudo, contrariamente àquilo que encontramos nas biografias embelezadas por acontecimentos místicos e sobrenaturais, os santos não foram perfeitos. Os santos foram pessoas que peregrinavam em direção à perfeição que se completa ao se alcançar “a maturidade, a estatura de Cristo em plenitude” (Ef. 4,13). São e foram peregrinos da vida quotidiana, a maior parte deles realizou feitos heroicos ou prodígios. Com certeza temos alguns que produziram realizações espetaculares na história da Igreja. Mas muitos outros, e podemos dizer na sua maioria, são os santos da simplicidade e vida discreta que viveram a santidade a partir de sua vida em família e nos limites de sua própria vida de fé e que faleceram na discrição da santidade conhecida apenas por Deus. Mas todos unanimemente apresentam um rosto com traços de Cristo. Encontramos em cada um dos santos e santas um mesmo perfil: Vidas que deixaram-se formar, modelar e se transformar por Cristo.
A Santidade como nos lembrou outrora o Papa Bento XVI, é a realidade de uma família ligada por profundos laços de solidariedade espiritual, que une os fiéis defuntos aos vivos que peregrinam no mundo. Um vínculo misterioso, mas real, alimentado pela oração e pela participação nos sacramentos, principalmente da Eucaristia. No Corpo místico de Cristo as almas dos fiéis superaram a barreira da morte, intercedem umas pelas outras, realizam na caridade um íntimo intercâmbio de dons. É o que professamos no Credo sob o título de Comunhão dos Santos.
Assim, neste dia, a Igreja nos convida, aqui no plano histórico e material a enxergar através do véu que nos separa do mundo transcendente e invisível, para que possamos antever o além para onde caminhamos: a perfeição e a plenitude do Corpo de Cristo, manifestada naqueles que já vivem os esplendores da intimidade com Deus. A felicidade de todos aqueles e aquelas que, como nós, caminharam e lutaram sobre a terra para edificar e fazer realizar o testamento espiritual de Cristo manifestado nas Bem-aventuranças: amor, justiça e paz.
Roguemos a Maria Santíssima, aquela que permaneceu sempre fiel em seu sim a Deus, confiando na Graça e na Misericórdia. E que todos os Santos que na humildade entregaram suas vidas ao serviço do anúncio do Evangelho intercedam e nos ajudem a sempre mais confiar na Graça de Deus e a buscar também a mesma santificação por Cristo, com Cristo e em Cristo! Amém!
Pe. Paulo Sérgio Silva.
Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Farias Brito.