A SALVAÇÃO E LIBERTAÇÃO VEM DE DEUS
“Ele tem feito bem todas as coisas: aos surdos faz ouvir e aos mudos falar”. (Mc. 7,37)
A liturgia deste Domingo, enquanto nos faz acompanhar Jesus em direção às terras pagãs, nos revela que Deus tem um plano salvador e libertador para promover a vida e a felicidade de todos os seres humano. Seu desejo é continuamente nos recriar e transformar, até que todos nós alcancemos “à estatura do Cristo em sua plenitude”. (Ef.4,13).
Na primeira leitura (Is. 35,4-7a), o profeta Isaías convida o povo de Israel exilado na Babilônia, a mesmo soterrados na dor e no desespero, a permanecer com a esperança acesa, pois, Deus não tardará a vir ao encontro do seu Povo para o libertar e o reconduzir à sua terra. Nas imagens usadas pelo profeta (cegos que voltam a enxergar, surdos que voltam a ouvir, coxos caminhando, mudos cantando com alegria, o deserto transformando-se em terra fértil) se vislumbra uma vida nova abundante, transformadora, que Deus em seu perdão oferecerá novamente ao seu Povo.
Na segunda leitura (Tg. 2,1-5), São Tiago fala sobre a necessária coerência que deve existir entre fé e vida. Como exemplo, afirma que favorecer pessoas ricas enquanto se despreza aos pobres é uma atitude inaceitável na comunidade cristã, uma vez que a fé em Jesus Cristo não admite acepção de pessoas. O apóstolo Tiago, ao mencionar a divisão interna na comunidade expressada na forma de tratar melhor os ricos e desprezar os pobres, trouxe à tona uma situação desconfortante que ainda está presente em nossos dias. Como na época do apóstolo, tal atitude reflete ainda a mentalidade do mundo e revela que o coração que a pratica não está em comunhão com o exemplo e os ensinamentos de Jesus que sempre acolhia a todos, sobretudo os mais simples e pobres. Aqueles que decidiram seguir Jesus e acolheram sua proposta devem viver no caminho do amor, da solidariedade e da doação. Assim somos convidados a não marginalizar ninguém e a acolher com especial bondade os pequenos, marginalizados e os pobres.
No Evangelho (Mc.7,31-37), como vimos no evangelho do domingo anterior, a passagem de Jesus pela Galileia, resultou em muitas perseguições e incompreensões por parte dos líderes religiosos. Talvez por isto Ele tenha optado por ir a região da Decápole. Esta região, por receber considerável influência cultural grega e romana, era vista pelos judeus como um território pagão totalmente fora do alcance dos planos da salvação. É neste ambiente “pagão” que Jesus realiza inúmeros sinais messiânicos. Ali, nas atitudes de Jesus, os discípulos começam a compreender que a graça de Deus veio para todos, sem exceção.
São nestas terras que hoje contemplamos Jesus, cumprindo o plano salvador de Deus Pai, encontrando um surdo-mudo. Provavelmente se trata de um homem pagão, pobre e desprezado. No seu gesto, Jesus revela quebrar as barreiras que impediam o encontro e a convivência fraterna com as pessoas de etnias, religiões e culturas diferentes. O ato de falar e ouvir são os meios de comunicação que mais utilizamos, assim sendo o surdo-mudo é apresentado com um homem que tem dificuldade em estabelecer laços, de partilhar, dialogar e se comunicar. Por possuir uma debilidade física numa época em que as doenças eram vistas como efeito do pecado, seu problema físico já o fazia ser visto como um pecador. Mas por não poder escutar ou falar sobre a Lei, passava a ser considerado como um portador de uma maldição especial dada por Deus. Por não poder ouvir e falar, o homem surdo-mudo representa todos aqueles que, por diversos motivos, vivem fechados aos clamores de Deus e de coração fechado ao relacionamento humano.
O homem é levado a Jesus por pessoas que não foram nomeadas. Para o evangelista Marco, este grupo que conduz o homem até Jesus é a imagem da comunidade cristã. São aqueles que já fizeram uma experiência pessoal com Jesus Cristo. São os que ao escutar sua Palavra, se deixaram transformar por ela, e uma vez aceitando segui-l’O, passam a dar testemunho dessa experiência e conduzir outros irmãos para o encontro libertador com Jesus. Esta sempre foi e será a essência da comunidade cristã: Conduzir a humanidade ao encontro de Jesus Cristo.
Marcos descreve as atitudes de Jesus de modo semelhante ao que João irá fazer futuramente em seu evangelho. Um Deus criador, onipotente, mas também compassivo e clemente é revelado nas ações que se seguem. Os seus gestos demonstram que Ele não quer somente “curar mais um doente”, mas “recriar” a pessoa. Ao ficar sozinho com o homem surdo-mudo, Jesus o reconhece como pessoa, alguém existente, que é digno de estar na presença de Deus. A saliva e o barro (materiais visíveis da cura) recordam o ato criador nos primórdios, quando Deus molda o ser humano com a mão no barro (Gn. 2.7). O ato de olhar para ao céu no momento da cura, revela de onde virá a força. O último gesto de Jesus para operar o milagre é um suspiro, ato que recorda o hálito divino soprado sobre o boneco de argila para criar o homem-Adão (Gn. 2.6-7). O milagre ou sinal é completado com uma palavra “Éfata! = Abre-te” que recorda o “Fiat! = Faça-se!” (Gn. 1,26-27).
Ao curar o homem, Cristo o devolve ao convívio porque o torna capaz de se comunicar e criar laços familiares e comunitários com Deus e com todos os irmãos. E uma vez reintegrado a sua comunidade, o homem novo poderia pegar emprestado as palavras do profeta Isaías: “o Senhor Deus me deu uma língua de discípulo para que eu saiba ajudar com uma palavra quem está cansado. Toda manhã ele me desperta e abre os meus ouvidos para que eu ouça como um discípulo.” (Is. 50,4)
A atitude de Jesus Cristo nos faz compreender que Deus não aceita que fiquemos fechados no egoísmo e na autossuficiência, rejeitando trilhar o caminho do amor, da fraternidade e da comunhão. Em um mundo com tantos ruídos físicos e metafísicos, todos nós podemos acabar presos em um estado de surdez espiritual impedido de ouvir a Palavra. É preciso manter o coração aberto e desperto, para podermos dizer como Santo Agostinho: “Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz”. (Confissões de Santo Agostinho Livro 10, 38)
Diante da ação misericordiosa de Deus que restaura a dignidade dos que foram feridos pela exclusão e pelo pecado, devemos seguir o seu exemplo em promover mais a comunicação e a acolhida para que o mundo, ao contemplar a ação de Cristo atualizada na ação da sua Igreja, possa também dizer como a multidão no final do evangelho: “Ele tem feito bem todas as coisas.” (Mc. 7,37).
Pe. Paulo Sérgio Silva
Diocese de Crato.