“Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!” (Mt. 17, 5)
No segundo Domingo da Quaresma, a Palavra de Deus nos convida a estar atentos para não perder os passos e a voz que o discípulo deve seguir para permanecer fiel a experiência do encontro realizado no Monte Tabor. Em Jesus e com Jesus compreendemos que a escuta atenta a voz de Deus será sempre o caminho que tornará possível a todos nós permanecer na obediência integral que concretizará os planos salvíficos do Pai. Ao longo destas semanas de caminhada quaresmal vislumbraremos – através da primeira leitura – a iniciativa de Deus para retomar a comunhão que a humanidade havia quebrado com o pecado, enquanto acompanhamos seu Filho, Jesus Cristo, em sua última peregrinação a Jerusalém onde será realizada em plenitude e em definitivo, a redenção da humanidade.
Na primeira leitura (Gn. 12,1-4a) contemplamos mais um passo da humanidade nos inícios de sua história. Se no domingo passado vimos a humanidade escolhendo o pecado e caminhando para afastar-se de Deus (Gn. 3,1-7), hoje vemos um lampejo fulgurante de esperança: Deus, ao buscar Abraão, revela que não desistiu da humanidade e almeja reestruturar a comunhão que a rejeição havia obliterado. Longe de ser um privilégio para Abraão, sua vocação é na verdade uma grande responsabilidade, pois a partir de sua resposta, ele deverá se tornar um sinal do amor de Deus no meio da humanidade dilacerada pela discórdia e pelas escolhas pecaminosas.
O convite de Deus – que ocupa o lugar central na leitura – é audacioso. À humanidade desconfiada de sua presença, Deus, na pessoa de Abraão, convida a deixar a sua terra natal e a sua família, bem como tudo que representa as seguranças vitais e partir em busca uma outra terra. Ao lado do convite, aparece uma bênção e a promessa de que a família de Abraão haverá se tornar a mais numerosas das nações: a família da Fé. Como homem de fé, Abraão não responde ao chamado com palavras, mas com a ação do seu coração. Ele não discute, não levanta objeções e não permite que seus medos o dominem. Em silêncio, numa confiança e obediência incondicionais aos desígnios de Deus, se coloca a caminho em busca do seu novo lar. Nesta perspectiva, ele tornou-se modelo da fé porque percebe o plano de Deus e o segue de todo o coração. Como estou em minha vocação? Prefiro continuar prisioneiro dos meus planos pessoais, dos meus medos, dos meus hábitos e costumes, das minhas formas de pensar, de agir e de julgar os outros?
Na segunda leitura (2Tm 1,8b-10), continuando o tema da vocação, o Apóstolo Paulo exorta seu companheiro missionário Timóteo a viver com coerência, seriedade e integralmente o chamado que recebeu. Tal qual Abraão, Timóteo e os demais discípulos também responderam corajosamente o chamado de Deus. No entanto, não podem esquecer que os desafios que advieram e advirão da resposta. Na época em que foi escrita esta carta Timóteo já era bispo de Éfeso. Ele e sua comunidade começaram a sofrer as grandes perseguições. Muitos cristãos, com medo, negaram a fé e outros estavam desanimados e vacilantes no testemunho do Evangelho. Assim o Apóstolo Paulo, numa atitude de amor, solidariedade e encorajamento, ensina que será necessário que os líderes das comunidades, inclusive o próprio Timóteo, mantenham o ânimo e ajudem os demais membros das comunidades a suportar, com fortaleza e por amor ao Evangelho, as dificuldades que se aproximam. E isto somente acontecerá se eles permanecerem confiando em Jesus Cristo. A confiança plena na graça de Deus deve ser característica da pessoa que evangeliza. Nas palavras do Papa Francisco em sua mensagem para a quaresma deste ano de 2023: “É preciso se colocar a caminho numa atitude que requer esforço, sacrifício e concentração.”
No Evangelho (Mt 17,1-9) escutamos o relato da Transfiguração de Jesus. Numa catequese que toma emprestada elementos das teofanias do Antigo Testamento, o evangelista Mateus nos introduz em um momento de intimidade messiânica onde Jesus é revelado em plenitude como o Filho amado de Deus Pai que libertará a humanidade através do dom de sua vida divina. O quadro narrado reproduz uma realidade análoga aquela apresentada na primeira leitura, no entanto, aprofunda o que se conhece como teofania. Se no livro do Gênesis Deus se revela apenas na fala, aqui se realiza um encontro concreto. Deus é visto e ouvido, pois se faz presente, próximo e ao alcance de um toque de mão, tal qual João relatará em uma de suas cartas. (Cf: 1Jo 1, 1-4)
Neste pequeno relato, nos é apresentado um resumo de todos os momentos que o povo de Israel fez experiência do encontro com seu Deus e que alicerçaram sua fé: o rosto resplandecente e as vestes fulgurantes recordam Moisés iluminado descendo do Sinai depois de encontrar Deus e receber as tábuas da lei (cf. Ex. 34,29); A nuvem que envolve a todos no Tabor, como quando Deus quando conduzia o povo no deserto ou quando manifestava sua presença através do incenso na liturgia do Templo (cf. Ex. 33, 9-11; Ex. 40,35; Nm. 9,18.22; 2cr. 5, 13-14; Is. 6,4); Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas que foram sinais do zelo do Senhor e que deveriam se manifestar quando a salvação definitiva se iniciasse (Cf. Dt. 18,15-18; Mal. 3,22-23); A atitude de estupefata admiração que rouba as palavras dos discípulos reproduz a atitude da humanidade diante da omnipotência e da majestade de Deus (Cf. Gn. 18, 1-3; Ex. 19,16; 20,18-21; Is. 6, 4-5). Até mesmo o convite de Pedro para armar tendas recorda a “festa das Tendas”, rito celebrado em recordação ao tempo que Deus habitou na tenda da Aliança com seu povo no deserto (Cf: Ex. 33, 7-8; Dt. 16, 13-15). Mas afinal, porque Mateus oferece tanta informação implícita neste relato? A comunidade para quem se destinou inicialmente este evangelho era composta de cristãos vindos do judaísmo, por isto o evangelista mantém o zelo catequético de ligar a ação de Jesus como realização definitiva daquilo que fundamentou a fé do povo de Israel. Trocando em miúdos: é a garantia de que a missão de Jesus é um projeto que vem de Deus. Para que não reste dúvida alguma de que Jesus Cristo é o Filho de Deus, o Messias libertador prometido pelo Pai.
A decisão de Jesus de revelar-se em plenitude e graça aos discípulos se trata de um alento para que mantenham o ânimo, a coragem e a esperança uma vez que a transfiguração acontece logo depois do primeiro anúncio de sua Paixão, Morte e Ressurreição (Cf: Mt. 16,21-23) e também da apresentação das exigências para ser seu discípulo (Cf: Mt. 16,24-28). Aos discípulos, desanimados e assustados, o próprio Pai fala diretamente e diz: “Escutai-o!”. Se Abrão que se lançou corajosamente em busca de uma terra prometida porque confiou na presença do Senhor ainda que invisível aos seus sentidos, muito mais os discípulos deverão se lançar para as águas mais profundas uma vez que têm o privilégio de ter o próprio Deus tornado visível ante seus olhos e coração.
O pedido de Pedro para armar tendas revela também a tentação de querer fugir da missão e permanecer em um eterno momento de revelação gloriosa. Tal atitude é reprovada por Jesus porque sua missão não é permanecer ali, pois não será lá que Ele doará sua vida na cruz. Os discípulos precisam seguir caminhando com Ele para Jerusalém e também aceitar o fato de que no futuro todos eles terão o mesmo destino que o Mestre. No entanto, não apenas o caminho da Cruz, mas também o fulgor do sepulcro vazio que anuncia o ressuscitado vindo novamente ao seu encontro.
Como eles, nós, os discípulos atuais, nesta quaresma somos convidados a subir um alto monte espiritual para nos aproximarmos de Deus e juntamente com seu Jesus Cristo, como outrora viveu seu Povo Santo, permanecer em atitude de ascese, confiança, esperança e fé. Mas, para isto é preciso descer do Tabor e permanecer no caminho da Cruz e entender que ela não se resume a morte, mas ao dom da vida, da entrega total, do amor até às últimas consequências.
Pe. Paulo Sérgio Silva.
Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Farias Brito.