“Jesus respondeu: ‘está escrito: não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’. ” (Mt. 4,3)
Com esta celebração somos convidados a pausar o Tempo Comum e darmos início a nossa caminhada quaresmal em busca conversão e redenção. A Palavra de Deus ao apresentar os extremos de nossa história – a queda no pecado original e a comunhão do Filho com Deus Pai – nos recorda que enquanto acompanhamos nosso Mestre em sua peregrinação a Jerusalém precisaremos decidir com quem partilharemos de fato a nossa existência e se queremos edificar no hoje de nossa vida o Reino de Deus que Jesus veio anunciar.
Na primeira leitura (Gn. 2,7-9;3,1-7) somos apresentados a catequese inicial da Bíblia. Com o alvorecer da exegese e hermenêutica modernas se faz necessário lembrarmos que o relato bíblico que meditamos não possui como finalidade realizar uma descrição histórica das nossas origens. Antes de tudo sua intenção é catequética-teológica. Mais do que ensinar cientificamente a gênese do homem e do universo, o autor sagrado nos afirma categoricamente que Deus está na origem de tudo.
Podemos discernir dois ensinamentos no texto. No primeiro, Deus é apresentado como um oleiro que de modo amoroso e cuidadoso modela a argila. Assim a humanidade aparece tendo sua origem ligada a Deus e a terra. Modelado da terra, no entanto, o homem possui um diferencial, ele recebe o “sopro” da vida divina. O homem é apresentado então como a joia incrustada no centro da criação; a obra prima de Deus. O segundo ensinamento, gira em torno das perguntas: Para que Deus criou o homem? Qual a origem do mal? Na visão do autor, Deus criou o homem para ter comunhão com ele e fazê-lo feliz. É colocada próximo ao homem a árvore da vida como símbolo da imortalidade que Deus deseja oferecer a humanidade. E também a “arvore do conhecimento do bem e mal”. Comer desta arvore é o sinal do orgulho e a autossuficiência de quem acha que pode conquistar a sua própria felicidade, querendo decidir por si só o que é bem e o que é mal, reivindicando autonomia total em relação ao criador e renunciando a comunhão com Ele. O mal é explicado então não como uma força equivalente a Deus ou como uma criatura Dele, mas como uma realidade histórica que é fruto das escolhas erradas que o homem realizou desde o início da sua criação.
Na segunda leitura (Rom 5,12-19) São Paulo inicia a apresentação de sua teologia da justificação pela graça. Na perspectiva do Apóstolo, com a rejeição do projeto divino, a morte entrou em nossa realidade histórica, pessoal e social como “amargo fruto” do egoísmo/pecado tornando-se a herança comum a todos os seres humanos nascidos de Adão. Nesta ótica são propostos dois caminhos ou exemplos: Adão e Jesus. Adão simboliza a humanidade que escolhe afastar-se das propostas de Deus e trilhar sozinha os caminhos de sua existência em busca de realização pessoal. As escolhas de Adão geraram um legado de violência, injustiça, sofrimento, desarmonia e desolação que culminaram na morte – seja ela biológica ou espiritual – que é o resultado do ato de se distanciar de Deus que é a origem da vida. Jesus é o homem que escolheu fazer da obediência ao Pai o centro de sua vida e missão. Da sua livre intervenção histórica nasce uma nova dinâmica de vida para a humanidade, fruto da graça outra vez “insuflada” no coração da humanidade e lhe concedendo a vida eterna. Em suma, dos esquemas de Adão gerados no egoísmo resultaram sofrimento e morte; o Reino de Deus gerado em Jesus frutifica em redenção e vida em abundância, pois de seu ato de expiação surgiu a anulação definitiva do poder do mal.
O Evangelho (Mt. 4,1-11) nos coloca diante dos primeiros passos da missão de Jesus. Nas tentações em meio ao deserto é apresentado o horizonte que Ele vislumbrará durante toda a sua vida e missão. Se trata de uma catequese sobre as escolhas livres de Jesus. Nas tentações da gula (materialismo), da ambição (poder/domínio), da vaidade e presunção (sucesso/êxito fácil) são apresentadas as seduções primordiais do pecado e do mal: o Ter, o Poder e o Ser. Jesus, em meio a debilidade física e espiritual, rejeitou livremente os caminhos do egoísmo, do autoritarismo e do espetáculo, para viver uma vida de partilha, comunhão, de serviço e de simplicidade.
Depois de 40 dias de renúncias e jejuns como Cristo resistiu as seduções do maligno? Mantendo-se com a plenitude do Espírito de Deus, tendo a consciência de que não estava sozinho e revivendo toda a história do seu povo. Jesus sabe que o ato de se manter em comunhão com Deus Pai não é apenas uma decisão por Ele, mas por toda humanidade. Assim como o povo de Israel no deserto, Jesus experimentou a fome, e mesmo compreendendo a necessidade do alimento, reconheceu que a vontade do Pai era essencial e isto o sustentou. A carência do alimento é seguida pelo pensamento de que possuir/tomar/dominar todos reinos poderia suprir esta fome, mas o custo é alto demais. O preço por sucumbir a esta tentação é rejeitar Deus. É construir novamente o bezerro de ouro; é adorar a satanás. A fé no Pai que já fez tanto pela humanidade ao longo da história é mais fundamental que a admiração efêmera e a vanglória advindas das grandezas materiais. A última tentação é a mais sedutora, refinada e cruel e tem como intuito levar Jesus a esquecer do que Ele é essencialmente: Filho de Deus. Assim como aconteceu com Adão e Eva e com o povo no deserto, Jesus Cristo é levado a desconfiar do amor divino e tentar Deus. No entanto, Jesus não esquece em quem colocou a sua confiança.
Desmascaradas as mentiras e tentações vencidas, o diabo se retira para voltar “no tempo oportuno” que é a hora da Cruz. Será lá, no abandono da Cruz, onde será feita a maior e mais silenciosa tentação. E mesmo sentindo-se abandonado na sua comunhão plena com o Pai e com o Espírito, Jesus escolherá “entregar” o espírito ao Pai.
As tentações superadas por Jesus Cristo, no entanto continuam a ser apresentadas ao longo da história. Mesmo sem perceber, muitas vezes com nossas omissões, ambições e projetos pessoais egoístas, somos nós que as anunciamos aos irmãos. Pensemos também em quantos irmãos e irmãs abandonaram ou abandonam sua fé em Deus por causa da fome que nosso egoísmo impõe aos pobres e necessitados! Quantos se deixaram seduzir pelo desejo de posse material porque tiveram negados o trabalho e a dignidade! Quantos renunciaram os valores eternos porque diante das ameaças de violência tiveram que optar por preservar sua dignidade física? Quantos se ajoelham diante dos poderosos por medo da violência e dos horrores e desolação impostos pela guerra!
A partir deste domingo acompanharemos Jesus pelos caminhos da Galileia, indo ao encontro daqueles que experimentam a realidade de sentir-se como ovelhas em pastor. Quais serão as nossas escolhas? Anunciaremos a chegada do Reino com Ele na sua confiança plena no Pai? Ou cairemos ante o peso das tentações e O abandonaremos pelo caminho ao longo da história?
Pe. Paulo Sérgio Silva
Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Farias Brito.