No arco destes últimos dez dias, temos ouvido que o Ano Litúrgico se encerrou com a solenidade de Cristo Rei e que um novo ano se abriu com o primeiro domingo do Advento. Mas o que isso significa de fato? De antemão podemos estar seguros que não se trata apenas de virar uma página do calendário ou repetir um ciclo de celebrações. Na vida cristã, nada é banal; e cada recomeço — por mais simples que pareça — é sempre um espaço onde Deus volta a nos encontrar.
Para começar a entender o tema, nada melhor que lançar mão de uma imagem, muito familiar por sinal, que vem empregada por São Paulo na carta aos Romanos 11,17 – 18: o raminho de oliveira brava que é enxertado na oliveira doméstica. No batismo fomos enxertados em Cristo como este raminho; e, ao longo do ano litúrgico, somos amadurecidos, estação por estação, até que a seiva da graça faça produzir em nós frutos de uma vida renovada. Reviver os mistérios da vida, paixão e morte do Senhor por meio das celebrações nos permite consolidar esta união vital com Ele, efetivando o vínculo “da videira com os ramos” (Jo 15).
Se quiséssemos ainda outra imagem, poderíamos pensar em uma estrada: a que nos leva a casa, ou mesmo aquela que percorremos em romaria para ir a um santuário. A rota é sempre a mesma, dia após dia, ano após ano, mas cada volta por ela revela uma luz nova, como se o sol incidisse sobre cada curva em ângulos diferentes. Por isso, quando a Igreja nos convida a fazer o caminho do ano litúrgico, recorda-nos que os eventos da salvação têm sempre tanto de novo a nos mostrar. Os Padres da Igreja diziam que o “oitavo dia” — o dia da Ressurreição — ilumina os sete dias da criação. Assim também a vida de Cristo ilumina toda a história humana, inclusive a nossa, e cada celebração litúrgica atualiza essa luz, fazendo dela presença viva da salvação no hoje.
Os elementos da natureza têm tanto a comunicar na linguem do Mistério. Aliás, a liturgia é sempre celebrada em harmonia com o cosmos, com a criação, e o próprio Jesus, que nos convidou a olhar as aves do céu e os lírios do campo, também nos advertiu certa vez: “Sabeis interpretar o aspecto do céu, mas não reconheceis os sinais dos tempos” (cf. Lc 12,54). No sertão, onde cada dia é lido com a sabedoria de quem depende do Céu, essa palavra encontra morada.
O sertanejo conhece os sinais: distingue a chuva pelo cheiro da terra antes que caia a primeira gota de água; percebe no vento a mudança da estação; reconhece no canto dos pássaros a promessa de um dia bom. Aprende que a vida é escrita nas entrelinhas da criação — e talvez por isso entenda melhor o apelo do Evangelho: ler os sinais do Reino, perceber no murmúrio do Espírito aquilo que o mundo não nota, alegrar-se com a certeza de um Deus que vem, sempre vem, e nunca deixa de vir.
O advento nos faz dar os primeiros passos na estrada de que falávamos acima. Como um peregrino que viaja para longe e não pode dormir demais para não perder a hora, despertamos em meio à densa escuridão. O silêncio da oração vigilante própria destas quatro semanas parece com a quietude da madrugada, antes que os galos anunciem o novo dia. A Palavra proclamada cai no coração como orvalho silencioso, e cada vela acesa na coroa, nos mostra a luz que cresce como o degradê do “quebrar da barra”. O gesto nos recorda que, etapa por etapa da história da salvação, desde o perdão dado a Adão e Eva até o anúncio do anjo à nova Eva, do Édem à casinha de Nazaré, a bondade de Deus nunca deixou a humanidade totalmente no escuro.
Tal qual o vento suave que passa pelo sertão ao amanhecer, ao mesmo tempo levantando a poeira seca do fim do ano e anunciando que a chuva está por vir, o sopro do Advento desperta o coração e o convida a recobrar o ânimo. Como o broto teimoso, que nasce entre as pedras desafiando a estiagem, ele nos inspira que alguém mais forte – Deus– pode fazer o impossível pela humanidade. O trovão do começo do inverno, depois de meses de silêncio, faz o coração do sertanejo estremecer, anunciando que o céu não esqueceu a terra. Assim também Jesus Cristo rompe o silêncio da história, vindo de mansinho, como chuva fina que prepara o solo para a abundância.
A promessa é segura e por isso a espera confiante, que se transfigura em esperança é a atitude marcante do tempo do advento. Como o agricultor que contempla o chão rachado, confiando na estação certa; como a espera da mãe que cuida do filhinho doente acreditando na cura, o Advento nos insere nessa mesma postura interior: a de quem sabe que a promessa é verdadeira, mesmo quando demora. E assim, tal qual o juazeiro, que no auge da seca renova a sua folhagem revestindo-se de um verde vicejante, também quem crê renova suas forças em Deus.
Unidas aos acenos que Deus nos faz por meio da natureza e da vida, as cores e os sons da liturgia nos envolvem profundamente. O roxo dos paramentos, que é também o tom dos cânticos, convida à sobriedade: é a cor do céu antes da chuva, densa, carregada de expectativa. E é belo notar que “tom” é palavra que serve tanto para a cor quanto para o som — como se Deus, na liturgia, pintasse e cantasse a mesma verdade: a de que o coração deve vigiar, mas vigiar com esperança. A liturgia inteira se torna, assim, um idioma divino que fala por meio de luzes, cores, cantos e melodias.
É belo ainda como a cada um dos quatro domingos a Escritura proclamada nos vai apresentando as personalidades que dão rosto à vigilância e à esperança: Maria, a terra fecunda onde a Palavra encontrou morada; Isabel, cuja esterilidade antiga floresce como chão seco que volta a dar fruto; e João Batista, farol na estrada, voz que ressoa no deserto e que prepara o caminho do Senhor.
Nelas se encontram a antiga e a nova aliança, como duas estações que se tocam: a promessa que vinha de longe e o cumprimento que chega de perto. Maria é o ventre onde Deus planta o novo início; Isabel é a surpresa de que nada é tarde para Deus; João é a tocha que abre a madrugada. São rostos familiares que nos lembram que a salvação sempre nasce no pequeno, no escondido, no que só os vigilantes percebem. Exemplos concretos de quem soube abrir os olhos do coração, que nos ajudam a aprender a decifrar a paisagem sagrada que Deus desenha na nossa história.
Aqui está, pois, um pouco da beleza do que celebramos: cada momento do Ano Litúrgico não repete fatos; atualiza a graça. Nada na liturgia é teatro ou lembrança distante: tudo é vida que toca o coração agora. Não esperamos apenas por uma data ou uma festa, mas por uma Presença. Não aguardamos simplesmente o Natal; aguardamos Jesus Cristo, que vem a cada instante para restaurar em nós a dignidade de filhos. Oxalá que, ao caminharmos pelas veredas do Ano Litúrgico que se inicia, permitamos que Cristo molde em nós a sua própria vida — até que cada gesto nosso seja como o primeiro sinal de chuva no sertão: anúncio humilde da graça preciosa que Ele depositou em nossos corações.
Padre Pedro André Bitú Bezerra
Mestre em Teologia dogmática e cultura moderna pela Universidade de Navarra – Espanha.





