CONTEMPLAR O MUNDO ATRAVÉS DOS OLHOS COMPASSIVOS DE DEUS
“Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. (Jo 8, 7)
A quinta parada em nossa peregrinação quaresmal nos coloca às portas de Jerusalém, cidade santa e lugar de conclusão da missão messiânica de Jesus Cristo. Depois de acompanhar Jesus nos momentos de resistência em meio as tentações diabólicas, de contemplar sua Transfiguração no Monte Tabor, de ouvir seu paciente chamado a conversão na parábola da figueira e fitar sua alegria misericordiosa diante do nosso retorno na parábola do filho pródigo, a sua Palavra agora fala-nos do seu infinito amor que nos desafia a abandonar as nossas escravidões (do pecado e fundamentalismo) e esquecer as coisas passadas para chegar à vida nova, à ressurreição que Deus nos oferece.
Na primeira leitura (Is 43, 16-21) escutamos um oráculo de salvação proclamado pelo profeta Isaías. Nele, sem menosprezar os grandes feitos realizados durante a libertação da escravidão do Egito, o profeta exorta o povo a perceber que Deus prepara algo infinitamente maior. Aproxima-se um “novo êxodo”. Uma libertação nunca antes vista e que é fruto de sua solicitude e amor. No entanto, se faz necessário libertar-se da nostalgia do passado para acolher a nova realidade que o Deus libertador preparou para o seu povo.
Na segunda leitura (Fl 3,8-14) o Apóstolo Paulo, utilizando sua própria história de vida como paradigma, desafia os cristãos de todas as épocas a libertar-se do “lixo” acumulado ao longo dos anos para descobrir o sentido fundamental da vida: alcançar a comunhão com Cristo que nos leva a identificar-se com Ele, atitude que nos introduz na ressurreição. As imagens da corrida e do prêmio apresentadas não visam uma recompensa material ou um status social, mas são um convite para não desistir e persistir na fé até o fim. O Apóstolo atesta e testemunha que a motivação de nossa “corrida espiritual” é o encontro com Cristo e a transformação que Ele provoca em nossa vida. Assim, ninguém julgue já ter alcançado a meta, mas todos devem seguir firmes para a vida eterna em Cristo Jesus.
No Evangelho (Jo 8, 1-11) o evangelista João, ao narrar o encontro da mulher adúltera com Jesus, nos convida a contemplar o mundo através da perspectiva do coração de Deus. Os fariseus e escribas levam diante de Jesus uma mulher, que de acordo com a Lei, tinha cometido um pecado que merecia a morte. Enquanto eles enxergam como uma ocasião para atestar a infidelidade de Jesus à Lei, Ele aproveita para revelar a atitude de Deus diante do pecado e do pecador. Embora Jesus saiba dos males ocasionados pelo pecado, jamais concordará com uma reflexão injusta da lei, que em nome de Deus, gera exclusão e morte.
Diante dos insistentes e maliciosos questionamentos, Jesus mantém sua paciência, mansidão e sabedoria. Sua resposta transforma os acusadores em acusados ao mesmo tempo que os convida a tomar consciência de que o pecado é uma falha possível a todos e que Deus compreende isto. Os acusadores olham para dentro si mesmos, enxergam “suas traves dentro dos olhos” e reconhecem-se também como pecadores. Jesus lança sobre a mulher um olhar de profunda compaixão. Ele censura os orgulhosos acusadores e se compadece de quem aceita a sua misericórdia. Este gesto de amor incomparável marcará tão profundamente aquela mulher, que ela não conseguirá mais levar a vida de antes. O “não voltes a pecar” lhe confere sentido e dignidade.
Os acusadores se retiram e na cena restam apenas duas pessoas: “a miserável e a misericórdia” (Santo Agostinho in Comentário ao Evangelho de João, 33,5 ). Os fariseus e mestres da lei se retiram e não permanecem diante da misericórdia porque sua fé é baseada em recompensas e autossuficiência. Acreditam que cumprindo escrupulosamente a lei não necessitam da graça divina porque sua observância das normas coloca Deus em dívida com eles. A mulher permanece ajoelhada diante de Jesus mesmo sem nenhum dos acusadores ameaçando sua vida. Ele permanece porque mesmo com a alma maculada pela presença do pecado, em algum lugar do seu coração permanece a certeza de que Deus a ama e irá resgatá-la.
A atitude de abaixar-se para escrever coloca Jesus no mesmo nível da mulher pecadora e revela um Deus misericordioso que ao invés de julgar impiedosamente uma falha, oferece-se para erguer o pecador e lhe curar as feridas. Deus não deseja a morte do pecador, mas sim que ele viva e tenha vida em abundância (Ez 33,11). Todavia, a misericórdia não é conivente com o mal, esta vida em plenitude somente se realizará com o abandono do pecado. A cena entre Jesus e a mulher pecadora nos remete ao relato do pecado original contido no livro do Gênesis. Assim como acontece no início da humanidade, a mulher é a única acusada como culpada pelo pecado. O amante da mulher adúltera não aparece no momento da acusação, assim como a serpente causadora da queda não aparece quando Adão e Eva são indagados por Deus. Todavia, com a pedagogia de Jesus há uma mudança na realidade. Enquanto no Gênesis, homem e mulher são expulsos e afastados de Deus, no evangelho, o Filho de Deus abaixa-se para se colocar na condição da mulher pecadora, a perdoa e oferece uma nova vida através da exortação para abandonar o pecado.
Em nosso contexto atual, com tristeza, vemos cada vez mais pregadores (bispos, padres, freis e leigos) utilizando-se da Verdade como arma para atacar, julgar e condenar. A verdade sendo dito aos berros, vociferações e rosto enfurecidos para causar impacto e monetização nos vídeos. Jesus sempre apresentou a verdade pessoal de cada um como algo que aliada ao perdão divino e a misericórdia, promove a cura interior que torna a pessoa capaz de assumir e reconhecer sua dignidade e recusar as futuras seduções do mal e do pecado. Podemos perceber isto concretamente no encontro de Jesus com a Samaritana, com Zaqueu, com Mateus e com o próprio Pedro (Cf: Jo 4, 7-26; Lc 19,1-10; Lc 5,27-32; Lc 22,31-34). A verdade da realidade do pecado presente na vida do pecador, se dita de forma ferina, voraz e beligerante apenas empurrará o pecador mais fundo no lamaçal do pecado. Jesus não nega a realidade da vida daquela mulher, mas a leva a reconhecer que precisa mudar.
Diante do cenário narrado no evangelho, facilmente nos identificamos com a vulnerabilidade da mulher e com a sua abertura para acolher o transformador perdão divino, capaz de gerar uma vida nova. Muitas vezes, como ela, sentimos o peso do julgamento vindo de quem poderia ajudar a erguer-nos. Às vezes a acusação e condenação vem de nós mesmos, quando por causa de uma imagem distorcida de Deus, concluímos que não somos dignos do seu perdão. No entanto, é preciso lembrar que muitas vezes, sem perceber, também agimos como os fariseus, tão ágeis em apontar, julgar e condenar a fraqueza dos outros, enquanto varrem suas fragilidades e pecados para debaixo do tapete. E aqui Jesus, com atos e palavras, nos recorda um preceito fundamental para os cristãos: “Não julgueis para não serdes julgados. Porque com a mesma medida que medirem, serão medidos” (Cf: Mt 7,1-5; Mc 4,24; Lc 6,37-38; Rm 2,1-4; 1Cor 4,5)
É justo e necessário reconhecer, com humildade, que todos necessitamos da ajuda do amor e da misericórdia de Deus. Somente assim compreenderemos que o castigo, o fundamentalismo e a intolerância não libertam nem redimem e apenas fortalecem o mal e o pecado. Na atitude de perdão compreendemos que apenas o amor e a misericórdia são capazes de oferecer vida nova a humanidade.

Pe. Paulo Sérgio Silva.
Diocese de Crato.




