HOMILIA DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS[1] – ANO C

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ORAÇÃO, JEJUM E ESMOLA: CAMINHO DE CONVERSÃO

Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus.” (2Cor 5,20)

            A partir da celebração de hoje faremos uma pausa na vivência litúrgica do Tempo Comum, pois iniciaremos o período da Quaresma, época favorável para promover nossa reconciliação com Deus e acolher a sua graça que veio a nós por meio do seu Filho Jesus. Iniciamos a caminhada espiritual que nos conduzirá à festa anual da Páscoa. Como o povo de Israel que peregrinou 40 anos no deserto; como Jesus que jejuou 40 dias e 40 noites; caminharemos estes 40 dias ansiosos para contemplar o Senhor Ressuscitado no novo dia da nova história.

            Na primeira leitura (Jl 2, 12-18), somos exortados pelo profeta e sacerdote, Joel, que convida o povo de Israel, depois do Exílio, a celebrar fielmente na casa do Senhor. O povo é convidado a oração, a conversão e a fazer jejum, penitência e súplicas a Deus. Eles haviam abandonado a Deus e agora deveriam voltar o coração inteiramente para Ele através de um verdadeiro e coerente culto que ao invés de se resumir a solenes gestos externos deveria ser acompanhado de manifestações concretas da sua conversão interior. O profeta lembra ao povo que Deus é misericordioso e compassivo. Como eles, nós, cristãos, somos convidados a rasgar nossos corações através da mortificação, da penitência e de uma entrega confiante ao Senhor na oração. Busquemos um sacerdote e rasguemos os corações no Sacramento da Reconciliação (1Pd 5,7) para receber sua “bênção, oblação e libação.” (cf: Jl. 2,14)

            Com a imagem de Deus compassivo e clemente apresentado pelo profeta Joel, na segunda leitura (2Cor 5,20-6,2), o Apóstolo Paulo nos convida a ter a coragem de se reconciliar com Deus. Ele nos lembra o sacrifício supremo do amor divino: seu Filho na cruz. O Cordeiro Inocente tornou-se pecado para que pudéssemos ter justiça diante de Deus. Por isto é agora o dia da salvação. No hoje, no agora, neste dia atual de nossa vida, devemos buscar a reconciliação com Deus para que a graça da morte e ressurreição do seu Filho não passe em vão em nossa história.

            No Evangelho (Mt 6,1-6.16-18), através do discurso de Jesus, somos apresentados as Obras de Penitência que são a tríade da espiritualidade cristã: a Oração, o Jejum e a Esmola. Ao mencioná-los, Jesus exorta os seus discípulos a viver uma vida coerente diante de Deus ao invés de transformar sua fé em um espetáculo externo para quem convive com eles. Aos seus ouvintes, Jesus sempre alertava para a urgente necessidade de reorientar continuamente a vida para Deus, eliminando cotidianamente a tentação farisaica de aparentar santidade e perfeição externa para os outros As cinzas recebemos hoje nos indicam que precisamos de nos arrepender dos nossos pecados e lembram-nos que a nossa vida neste mundo é efêmera, transitória e que estamos por aqui de passagem caminhando rumo ao Reino definitivo. Por isto, a cada ano neste tempo litúrgico, a Igreja, repetindo as exortações do Mestre, indica-nos estes três gestos bíblicos.

            A Oração, como nos ensina Santa Tereza D’Ávila, é um momento de diálogo íntimo com quem mais nos ama.  Mais do que uma lista de pedidos que parecem uma lista de compras, a oração deve ser o encontro com Deus; uma expressão daquilo que vivemos diariamente em nossa espiritualidade. É o ato de responder a escuta da sua Palavra e manifestar nossa confiança, apesar de vivermos num mundo que despreza a espiritualidade e a oração e que rejeitando a intervenção divina, esquece-se Dele. O Jejum é entendido normalmente como o ato de deixar de comer carne ou outro tipo de alimento. Todavia ele não deve se resumir ao esforço de mortificação pessoal na comida, mas também na mortificação dos gastos desnecessários, na exibição de riqueza, na moderação dos sentidos e das paixões desenfreadas. Deve ser expressão de uma consciência solidária, capaz de reconhecer a dor e o sofrimento das pessoas que passam fome. Quanto a Esmola, ela precisa ser mais do que aquilo que sobra. Esmola não é sinônimo de sobejo, logo não pode ser aquilo que me sobrou depois que me saciei. Precisa ser um gesto concreto que transforma vidas, garante a dignidade e a justiça. Deve ser um ato de serviço ao próximo. Numa sociedade cada vez repleta de pessoas abandonadas, depressivas e infelizes, reservar tempo para estar com o outro em sua vida, será sempre um ato de fé e serviço cristão.

            Cesare Giraudo afirmou em um livro que “quando celebramos a santa missa, vamos ao Calvário com os pés da alma e os pés da fé, subimos todos o Calvário naquela primeira Sexta-feira”[2]. Pela sua afirmação compreendemos a quaresma como uma peregrinação, que se percorrida pelos caminhos corretos, nos levará espiritualmente às portas de Jerusalém, para acompanhar o sacrifício pascal que nos foi entregue. E para transcorrer esta estrada longa, será de grande ajuda permanecer em íntima de comunhão com Deus, escutando a sua Palavra com acolhimento e confiança (Oração), perseverar no esforço de mortificação pessoal na comida, nas despesas, na exibição de riqueza, nos sentidos e nas paixões (Jejum) e transformar aquilo que foi renunciado em caridade para com o próximo, especialmente, para com os mais necessitados (Esmola).

Temos ainda na Igreja no Brasil para a vivência da Quaresma a Campanha da Fraternidade, que neste ano de 2025, toca outra vez, de modo corajoso, em uma ferida aberta: somos uma sociedade egocêntrica e consumista que não enxerga a dignidade do restante da criação. Em vista disto o seu tema deste ano, intitulado, Fraternidade e Ecologia Integral e o lema: “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31) nos lembra que ela será realizada com o objetivo de “promover, em espírito quaresmal e em tempos de urgente crise socioambiental, um processo de conversão integral, ouvindo o grito dos pobres e da Terra” (Objetivo Geral da CF 2025).

O consumismo voraz e poluição industrial em larga escala que destroem a natureza e impedem os mais pobres de viver com dignidade são manifestações de corações corrompidos pela ganância, luxúria e indiferença. Estas atitudes tenebrosas sequer deveriam existir em uma sociedade que se afirma cristã. Tendo consciência de que a Sagrada Escritura trata do egoísmo e o desprezo como um flagelo que exterioriza a ambição que gangrena a sociedade, a indicação de Jesus de que devemos nos sentir responsáveis diante das necessidades dos outros nos recorda que não podemos assistir com passividade e negligência à violência e a guerra no mundo, pois elas não são resultado da carência de bens, mas sim do nosso egoísmo que devora o planeta enquanto deixa o irmão a suplicar migalhas que caem de nossa ganância voraz.

A Comunidade Cristã nasce, renasce, se revigora e revitaliza-se continuamente através de um alimento que nutre o corpo e alma e que pode e deve ser partilhado: a Eucaristia. É ela, a Eucaristia, que ao nos congregar ao redor da mesma mesa e do mesmo pão, nos ensina que somos uma família de irmãos. Este Deus/homem que se fez pão para saciar nossa fome de amor deve nos tornar não apenas adoradores, mas em expressão concreta desta mesma compaixão que se doa em plenitude por nós. O que faremos? Como viveremos esta quaresma? Como responderemos aos apelos de Deus? Diremos novamente: “Por acaso sou o guarda do meu irmão”? (Gn. 4, 9) ou abriremos confiantemente nossas mãos e diremos: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes?” (Mt. 14,17)

Caminhemos pressurosos movidos e atraídos pelo Amor que se entrega por nós na Cruz.

Pe. Paulo Sérgio Silva

Diocese de Crato.

[1] O uso das cinzas como ato litúrgico remete a tempos imemoráveis. Seu uso aparece já no Antigo Testamento com o sentido de dor, morte e arrependimento. Nos relatos do cristianismo primitivo percebemos que a Igreja primitiva praticava o ritual como penitência e mortificação. Nos dias atuais impomos as cinzas em forma de Cruz sobre a testa dos fiéis ou com um pequeno punhado de pó sobre a cabeça, para lembrar a necessidade de conversão e a salvação que nos veio na cruz de Cristo. Assim a imposição das cinzas permanece como um símbolo do dever da conversão e da mudança de vida, para recordar a fragilidade da vida humana, sujeita à morte e necessitada da graça de divina.

[2] Cesare Giraudo in Redescobrindo a Eucaristia.

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