CHAMADOS A SER BONS DISPENSADORES DA GRAÇA DE DEUS
“Em verdade eu vos digo, quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa.” (Mc. 9,41)
Celebramos neste domingo o Dia da Bíblia, a Palavra de Deus comunicada com palavras humanas e que, antes de tornar-se livro, foi vivida e transmitida oralmente por inúmeras comunidades, ao longo dos tempos. Sua Palavra manifestada nas Sagradas Escrituras deveria estar ao alcance de todos, todavia, ao longo das eras faltaram pessoas que pensaram que a Bíblia não poderia ser acessível a todos, como hoje os discípulos demonstram ao proibir alguém de usar o nome de Jesus. Se desejar ser o maior ou mais importante é sempre uma pedra na qual se pode tropeçar na estrada do discipulado (como mostrado no domingo passado), pretender tornar-se o detentor/dono de Deus não é menos tentador para o coração de um cristão. Por isto, entre outras lições, a liturgia deste Domingo, nos revela que precisamos respeitar a liberdade de Deus caso queiramos mesmo fazer parte da comunidade do seu Reino.
A primeira leitura (Nm. 11,25-29), nos coloca diante do Povo de Deus em meio a sua estadia no deserto. Para ajudar Moisés a conduzir este povo, o Senhor solicita 70 anciãos para receberem o seu Espírito. Dois homens que haviam sido escolhidos, não compareceram à reunião e mesmo assim receberam o Espírito da sabedoria de Deus, fato que causou indignação e revolta em algumas pessoas. Este fato revela a liberdade do Espírito de Deus que sopra onde quer e sobre quem quer, não seguindo nossas regras determinadas, nossos interesses pessoais ou privilegiando uma instituição. A atitude de Josué é perigosa por demonstrar uma tentativa de monopolizar a graça de Deus, impondo a Ele um modo de agir. A resposta de Moisés apresenta o coração de um verdadeiro líder, pois se percebe que ele não está preocupado em manter sua posição de autoridade e poder, mas com o bem estar da vida e a felicidade do seu Povo.
Na segunda leitura (Tg. 5,1-6), São Tiago, nos lembra que não somos donos dos dons divinos, mas semeadores chamados a partilhar com os outros aquilo que recebemos. Por isto, nos encoraja a não colocar a esperança nos bens passageiros. Colocar a confiança nos bens materiais pode facilmente nos levar a ganância e a cobiça que desembocará no acúmulo destes bens. O agravante é que muitas vezes, a concentração de renda é resultado do roubo e da negação dos direitos dos que trabalham. Os luxos e os prazeres dos ricos são ganhos à custa da morte dos pobres. São Crisóstomo em um de seus sermões falava: “riqueza excessiva é roubo, não porque foi roubado como um meio de obter riqueza, mas porque mantê-la é para privar os outros de suas necessidades. Se tens dois pares de sapatos, um pertence aos pobres.”
No Evangelho (Mc. 9,38-43.45-47-48), através das suas palavras, Jesus convida os seus seguidores a se abrirem para a gratuidade do Reino. Sua resposta aos discípulos, que se indignaram ao ver pessoas pregando o Evangelho sem pertencer ao seu grupo, nos revela que não devemos querer ser os possuidores exclusivos do bem e da verdade, mas devemos reconhecer e aceitar que a presença e a ação do Espírito de Deus podem se realizar através de pessoas boas que podem não pertencem à Igreja, todavia sendo sinais vivos do amor divino no meio do mundo. Aqueles que pertencem a comunidade dos discípulos de Jesus não podem fechar-se no proselitismo, arrogância, ciúme e autoritarismo.
A mentalidade dos discípulos novamente manifesta um coração regido pelas regras mundanas. Embora usando palavras diferentes, suas frases surgem carregadas da mesma emoção separatista que foi usada por Josué na primeira leitura. A ação de pessoas que não faziam do grupo de discípulos, “mas tinham a audácia” de usar o nome de Jesus para fazer o bem, causou indignação neles por ferir as regras de uma estrutura hierárquica estabelecida por eles mesmos e que supostamente lhes garantiria poder e prestígio no momento propício. Década depois, um Pedro já amadurecido pela idade biológica e pela conversão, permanecerá exortando as comunidades cristãs a lembrarem sempre que todos são chamados a ser “bons administradores da multiforme graça de Deus, colocando à disposição dos outros o dom que recebeu.” (1Pe. 4,10)
Jesus os convida a fortalecer a acolhida por gesto simples, mas concretos que podem criar e fortalecer laços fraternos, como oferecer um copo de água. Os exorta ainda a zelar para não se tornar causa de escândalos. Em nossa era atual, escandalizar é o ato de realizar uma ação que revolta a quem o presencia. Para o evangelista Marcos, significa criar obstáculo para impedir que o anúncio de Evangelho alcance alguém e ferir o outro na sua fé ainda nascente ou imatura. Compreendendo a parábola do olho e da mão arrancados, somos convidados a arrancar da nossa própria vida todos os sentimentos e atitudes que são incompatíveis com os valores do Reino. Tomemos cuidado para que não aconteça que brigando tanto por lugares de destaque no Reino e acabemos impedidos de ingressar nele porque nosso coração se tornou inconciliável com os seus princípios. Pois, o Reino não é um paraíso futurístico ou uma utopia, mas o projeto de Deus encarnado, tornado pessoa. O Reino de Deus é o Filho, Jesus Cristo, que deseja levá-lo a termo, construindo-o e vivendo-o conosco desde já no aqui e no agora e muito mais plenamente na eternidade.

Pe. Paulo Sergio Silva
Diocese de Crato




