HOMILIA DO 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO A CHAMADOS A VIVER LIVREMENTE A VONTADE DE DEUS

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Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento.” (Mt. 5, 17)

                Em nossa parada catequética desta semana, ainda em meio ao Sermão da Montanha, Jesus nos apresenta mais uma exigência para ser seu discípulo: conhecer e viver em plenitude a Lei. Pela atitude de Jesus compreendemos que a Lei é importante enquanto pedagogia que estabelece os limites e esclarece o certo e o errado. Mas a Lei, separada de sua essência, isto é, do seu propósito fundamental, pode acabar escravizando ao invés de conduzir a salvação.

                Na primeira leitura (Eclo. 15,16-21) somos apresentados ao livro do Eclesiástico. Esta obra foi escrita durante o período da influência da cultura grega sobre o povo de Israel. Por isto, ela reflete temas importantes tanto para a filosofia quanto para a teologia bíblica. Se trata então de um livro “sapiencial” cujo objetivo é apresentar conselhos e exortações de carácter prático afim de ajuda o leitor a bem conduzir sua existência na vida cotidiana. Estes conselhos unem a reflexão (ato racional) e a vivência (experiência). O autor sagrado escreve para ajudar os israelitas, diante da cultura grega, a contemplar a própria fé e cultura, a fim de evitar que percam sua identidade de Povo de Deus fazendo assim uma síntese da religião tradicional e da sabedoria de Israel, mostrando que a cultura judaica não é inferior a famosa cultura grega.

                O tema que contemplamos hoje é de suma importância, pois se trata do livre arbítrio. O autor informa que se trata de um dom que Deus nos concedeu afim de ajudar-nos a bem conduzir nossa vida em busca da felicidade. No entanto, liberdade não deve ser entendida como autossuficiência ou permissão para “agir como ímpio,” pois a ninguém foi dada “licença de pecar” (Eclo. 15, 21). Ao homem são apresentados diariamente dois caminhos: “a vida e a morte, o bem e o mal.” (Sl. 1; Dt. 30,15-20). Para ajudar a humanidade a escolher o Bem e a vida, Deus indica os “mandamentos” como os “sinais” ou “placas” que delimitam o caminho que conduz à salvação. Deus nada impõe, apenas propõe. Assim, os sábios de Israel aprenderam que se o homem escolhe caminhos de orgulho e de autossuficiência caminhando para longe de Deus e dos mandamentos, encontrará para si e para a comunidade destruição e morte. No entanto, se escolher construir para si uma vida à luz da presença divina, encontrará o que sempre almejou: paz, vida e felicidade (cf: Jr. 17,7-8).

               Na segunda leitura (1 Cor 2, 6-10), Paulo apresenta o plano salvador de Deus nomeado por ele como a verdadeira “sabedoria de Deus” ou “o mistério”. Se trata da proposta divina apresentada no início da criação, mas que se ocultou aos olhos humanos devida à rejeição que realizamos já no começo de nossa história (Gn. 2,1-24). Apesar desta recusa, Deus permaneceu, ao longo da história, sucintamente apresentando seu plano de amor através de profetas, sacerdotes, líderes, mulheres e homens que abriram o coração para sua vontade.  E no momento oportuno o revelou em plenitude na pessoa do seu Filho, Jesus Cristo, com a força do Espírito Santo, não apenas através de suas palavras, mas também dos seus gestos concretos, cujo ápice é a sua morte na Cruz. Tal qual foi narrado na primeira leitura, São Paulo recorda qual caminho escolhemos e como sofremos devido a esta escolha. Assim, Jesus Cristo e seu Evangelho são apresentados como plano salvador Deus a quem devemos escolher. Todavia, a escolha pelo caminho que conduz à vida plena, ou seja, a opção de tornar discípulo(a) de Jesus Cristo, é uma escolha livre que cada homem e cada mulher devem fazer.

                 No Evangelho (Mt.5,17-37) continuamos junto com os discípulos contemporâneos a Jesus, ouvindo o Sermão da Montanha. A catequese de hoje faz parte de um grupo com outros quatro grandes discursos através dos quais o Mestre oferece à comunidade um novo código ético, a nova Lei, que deve guiar sua vida e missão. Não se trata, como o próprio Jesus afirma, de uma abolição da Lei, mas de algo revolucionário e impensável para a comunidade de Israel até então: Uma “interpretação” do Decálogo. Para o povo de Israel era permitido apenas decorar a Lei e se esforçar para vivê-la; questionar para descobrir o sentido da Lei era algo inimaginável. No entanto, lembremos que para Mateus, em sua visão catequética, se trata do próprio Deus explicando ao povo o sentido último da Lei da qual Ele é a própria origem.

                 A catequese é dividida em duas partes:

                 Na primeira parte, Jesus afirma que não veio negar a Lei. Todavia, é preciso conhecer o espírito do Decálogo. Os mandamentos não são meramente um conjunto de prescrições rígidas que obrigam a humanidade a viver ou proceder de modo mecânico e automatizado, mas sim a expressão concreta de uma vida entregue a Deus. O grupo dos fariseus – que é citado como exemplo reprovável – pensava que a salvação seria algo “comprado ou adquirido por direito” devido ao cumprimento irrestrito e até irrefletido destas normas. E para Jesus não era suficiente cumprir os mandamentos, mas eles deveriam ser acompanhados de uma atitude interior que levasse o fiel a ter um compromisso verdadeiro com as propostas e a justiça de Deus.

                 Na segunda parte, Jesus cita quatro exemplos concretos aliados a reflexão do sentido de alguns mandamentos para ajudar a entender a necessidade de compreender a Lei para poder vivê-la em plenitude.

No primeiro exemplo refletido a partir do 5º mandamento (Não matarás. Cf.: Ex. 20,13; Dt. 5,17), no entender de Jesus o “não matar” não se resume a evitar extinguir a vida, mas implica o evitar causar todo e qualquer tipo de dano (seja físico ou psicológico) ao irmão. O ato de matar não nasce de algo imediato, mas é resultado de pequenas escolhas que somadas culminam no ato de odiar e matar. As palavras ofensivas, as calúnias e difamações que destroem a honradez, os gestos de deboche e desprezo que excluem, os confrontos que rompem os laços, tudo isto é uma forma de matar o irmão dentro do nosso coração. Aqui aparece também uma pequena catequese ligada aos três primeiros mandamentos que nos recorda que a eficácia do culto litúrgico está unida a comunhão fraterna, isto é, para se alcançar a reconciliação com Deus na oração se faz necessário também restaurar a comunhão com o irmão através da ação.

                No segundo exemplo diz respeito ao 9º mandamento (Não cobiçar a mulher do próximo. cf. Ex. 20,14; Dt.5,18), mas que está ligado também a outros dois mandamentos (6º – não pecar contra a castidade e 10º – não cobiçar a coisas alheias. Cf: Ex. 20,17; Dt. 5,21). Embora a letra da Lei exija apenas que se evite o adultério – ato que pode ser resumido em manter relação sexual com alguém fora do seu casamento – na concepção de Jesus para vivenciar plenamente o mandamento se faz necessário perscrutar o coração humano, pois é no coração – enquanto símbolo da consciência – que nascem os desejos de apropriação indevida daquilo que não nos pertence. Por isto, a analogia do olho arrancado e da mão cortada; porque elas querem indicar que devemos ir onde as ações más têm origem e eliminar, na fonte, as raízes do mal.

               O terceiro exemplo diz respeito ao divórcio (este tema será inclusive objeto de discussão entre os fariseus e Jesus). Conforme está escrito em Dt. 24,1, a Lei permite ao homem repudiar a sua mulher. Todavia, para Jesus esta lei nasceu do coração egoísta do homem, não de Deus. Para Ele, no plano original divino o divórcio não deveria existir. Quando Deus criou o homem e a mulher os chamou a amarem-se e a partilharem a vida em comunhão permanente.

                O quarto exemplo aparece ligado ao 8º mandamento (Não darás falso testemunho contra teu próximo Cf: Ex. 20,16; Dt. 5,20) e ao ato de julgar. A Lei de Moisés exigia juramento para que um compromisso fosse alicerçado na fidelidade. Já para Jesus, a necessidade de jurar para que se acredite na sua palavra manifesta uma atitude recíproca de desconfiança que impede o nascimento de uma aliança verdadeira.

                 É preciso lembrar que diante de nossos pés já se aproxima o período quaresmal; tempo propício para a conversão. Por isto, é inevitável perceber que em nossa vida, fazemos escolhas a todo momento. Deus nos ofertou este dom e respeita totalmente nossa liberdade. Somos absolutamente livres até para escolher a morte. No entanto, é inegável que a proposta divina de salvação, enquanto orientação de vida, está sempre diante de nós. Como outrora aconteceu no Éden, o bem e o mal, a vida e a morte são colocados diariamente diante de nossos olhos. Se escolhermos bem, escolhemos a felicidade eterna; se escolhemos o mal, optamos pela autodestruição.

                 Em suma, todas estas observações e exemplos dados por Jesus Cristo, nos ensinam que a salvação é dom de Deus que deve ser aceito pelo coração humano livremente, mas com todas as dimensões que isto implica. A Jesus não importa a exterioridade da Lei, mas a sua interioridade. Ele não a nega vivendo-a meramente com a aparência, mas a carrega na essência em seu coração. Todos nós podemos cair na armadilha de viver uma religião falsa e aparente, uma vida religiosa rígida, no entanto sem fé verdadeira, sem amor, sem alegria. Ser cristão não é viver escondido debaixo de proibições por medo do encontro com um deus punitivo. Cumprir mecanicamente um conjunto de regras não concederá “ingresso” pra comprar a salvação. A vivência dos mandamentos deve ser acompanhada de uma atitude interior que mova nosso coração em direção a Deus. Pois a verdadeira justiça – indicada pelos mandamentos – será sempre “viver a vontade de Deus Pai” (Jo. 6, 38-40).

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