Na Solenidade da Epifania do Senhor escutamos o anúncio das solenidades móveis do ano, nestes termos:
“Nos ritmos e nas vicissitudes do tempo recordamos e vivemos os mistérios da salvação. O centro de todo o ano litúrgico é o Tríduo do Senhor Crucificado, Sepultado e Ressuscitado, que culminará no Domingo de Páscoa, este ano a 17 de abril”.
Na liturgia, de fato, recordamos e vivemos o Mistério Pascal de Cristo, causa de nossa redenção, não apenas como narração de fatos passados, tragados para sempre pelo passado que não volta mais, mas, pelo contrário, somos inseridos no tempo da graça (kairós), no hoje de Deus, que atualiza nas celebrações litúrgicas os acontecimentos salvíficos de Deus em favor do seu povo. A liturgia, com efeito, é memorial da Páscoa de Cristo, acontecimento irrepetível, mas que nos toca todos os dias de modo novo e atual, na Palavra e no Sacramento, e de modo especialíssimo nas celebrações da Semana Santa com o seu cume no Tríduo Pascal.
Como afirmou a constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia: “Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contato com eles, se encham de graça” (n. 102). A Semana Santa, portanto, antes chamada de Semana Maior, por causa da densidade dos acontecimentos nela celebrados, é este tempo especial para nos enchermos da graça do Senhor e, para que tenha eficácia em nossas vidas, é necessário celebrá-la e vivê-la, passo a passo, na contemplação dos mistérios celebrados, desde a entrada do Senhor em Jerusalém (Domingo de Ramos da Paixão do Senhor) até à consumação de sua Páscoa, também na Cidade Santa. É um tempo de especial recolhimento que jamais pode ser confundido com um feriado prolongado. É tempo de graça e misericórdia, de associarmo-nos ao Senhor em sua paixão, morte e ressurreição.
Conforme a tradição, na Quinta-feira Santa celebra-se a Missa do Crisma. Nela “o bispo, concelebrando com o seu presbitério, consagra o santo Crisma e benze os outros óleos, é uma manifestação da comunhão dos presbíteros com o próprio bispo, no único e mesmo sacerdócio e ministério de Cristo (…) Os fiéis sejam também encarecidamente convidados a participar nesta missa e a receber o sacramento da Eucaristia durante a sua celebração” (Carta Circular Paschalis solemnitatis, n. 35). Esta celebração deve ser feita na Igreja Catedral e os santos óleos, por sua vez, podem ser acolhidos nas paróquias antes da Missa da Ceia do Senhor ou noutro momento oportuno.
Dada a sua importância, “o sagrado Tríduo pascal da Paixão e Ressureição do Senhor resplandece como o ápice de todo o ano litúrgico. Portanto, a solenidade da Páscoa goza no ano litúrgico a mesma culminância do domingo em relação à semana” (Normas sobre o Ano Litúrgico e o Calendário – NALC, n. 18). O Tríduo Pascal começa com a Missa vespertina da Ceia do Senhor (na quinta-feira), possui o seu núcleo na Vigília Pascal e encerra-se com as segundas vésperas do Domingo da Ressurreição (NALC, n. 19). O Tríduo do Cristo crucificado, morto e ressuscitado recorda que o mistério pascal contempla estas três facetas, sofrimento, morte e ressurreição. O mistério da Cruz, da morte do Senhor e descida à mansão dos mortos e sua gloriosa ressurreição é antecipado sacramentalmente pelo Cristo na última ceia, quando se dá aos seus discípulos no pão e no vinho. Como explica o liturgista Matias Augé, “enquanto o Tríduo nos apresenta a realidade do mistério pascal dando particular relevo à dimensão histórica, a celebração noturna da Quinta-feira Santa no-lo transmite em sua dimensão ritual. É o momento ‘sacramental’ do único mistério pascal” (Ano Litúrgico: é o próprio Cristo presente na sua Igreja, 2019, p. 163).
“Com a missa celebrada nas horas vespertinas da Quinta-feira Santa, a Igreja dá início ao tríduo pascal e recorda aquela última ceia em que o Senhor Jesus, na noite em que ia ser traído, tendo amado até ao extremo os seus que estavam no mundo, ofereceu a Deus Pai o seu Corpo e Sangue sob as espécies do pão e do vinho e deu-os aos apóstolos como alimento, e ordenou-lhes, a eles e aos seus sucessores no sacerdócio, que fizessem a mesma oferta” (Cerimonial dos Bispos, n. 297). O Próprio Missal Romano indica que estes mistérios – a instituição da eucaristia, do sacerdócio e a entrega do novo mandamento – devem ser apresentados na homilia desta celebração. A Eucaristia, sacramento de amor, exige da nossa parte o serviço e a caridade fraterna, por isso o rito do lava-pés. A liturgia ainda nos recorda, com o Hino Ubi caritas, de São Paulino de Aquileia (Séc. VIII): “Onde o amor e a caridade Deus aí está”.
Na Sexta-feira Santa a Igreja celebra o mistério da crucifixão e morte redentora de Cristo, recorda seu nascimento do lado aberto do crucificado e intercede pelo mundo. “A Igreja, seguindo uma antiquíssima tradição, neste dia não celebra a Eucaristia; a sagrada Comunhão é distribuída aos fiéis só durante a celebração da paixão do Senhor; aos doentes, impossibilitados de participar desta celebração, pode-se levar a Comunhão a qualquer hora do dia” (Carta Circular Paschalis solemnitatis, n. 59). É dia de penitência, observando-se o jejum e a abstinência de carne (Cân. 1251). O jejum pascal da Sexta-feira Santa pode prolongar-se durante o sábado, até à Vigília Pascal (Sacrosanctum Concilium, n. 110; NALC, n. 20). “A celebração da paixão do Senhor deve ser realizada depois do meio-dia, especialmente pelas três horas da tarde” (Carta Circular Paschalis solemnitatis, n. 63). Na liturgia deste dia, o olhar volta-se à paixão do Senhor: proclama-se a Paixão (liturgia da Palavra); invoca-se a Paixão (orações solenes); venera-se a Paixão (adoração da Cruz) e comunga-se da Paixão (comunhão eucarística) (Cf. AUGÉ, 2019). Os textos litúrgicos, especialmente os Improperia (Lamentos do Senhor) e hinos para a adoração da cruz, são riquíssimos em teologia e espiritualidade. Podemos leva-los à nossa meditação e oração pessoal.
No Sábado Santo, a Igreja permanece junto ao sepulcro do Senhor, à espera da ressurreição. Neste dia não se celebra a eucaristia. A sagrada comunhão só pode ser dada como viático. Não se celebram os demais sacramentos, exceto Penitência e Unção dos Enfermos (Carta Circular Paschalis solemnitatis, n. 75). Neste dia recorda-se o descanso do Senhor e a sua descida aos infernos (mansão dos mortos, Hades). O Sábado Santo recorda-nos a realidade da morte de Cristo, ele morreu de verdade, experimentou a nossa morte e desceu à região dos mortos para salvar os justos que esperaram a redenção (Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 633). A luz de Deus, em Cristo, penetra as trevas do abismo da morte, das quais Cristo sai vitorioso na sua ressurreição, tendo nas mãos as chaves da morte e do Hades (Ap 1,18). Neste dia celebra-se somente a Liturgia das Horas. Os exercícios de piedade podem ajudar à oração no Sábado Santo, como a meditação das dores de Maria. Ela, associada ao Senhor Jesus de modo único na sua Paixão junto à cruz, é Senhora das Dores; tendo o Filho morto nos braços, é a Senhora da Piedade; junto ao sepulcro, é a Senhora da Soledade.
O centro do Tríduo Pascal é a Vigília Pascal. “Segundo uma antiquíssima tradição, esta noite é ‘em honra do Senhor’, e a vigília que nela se celebra, comemorando a noite santa em que o Senhor ressuscitou, deve ser considerada como ‘mãe de todas as santas vigílias’. Nesta vigília, de fato, a Igreja permanece à espera da ressurreição do Senhor e celebra-a com os sacramentos da iniciação cristã” (Carta Circular Paschalis solemnitatis, n. 77). A Vigília Pascal é uma das mais ricas celebrações da Igreja, em profundidade, teologia e espiritualidade. Compõe-se de quatro partes: liturgia da luz, liturgia da Palavra, liturgia batismal e liturgia eucarística. Esta Vigília é a primeira celebração do Domingo de Páscoa. Conforme Matias Augé (2019, p. 172), é “‘uma noite vestida de dia’, demostrando mediante os sinais rituais que a vida da graça brotou da morte de Cristo”. É uma noite de especial escuta da Palavra de Deus, proclamada abundantemente, seguindo a história da salvação, desde a Criação, passando pelo sacrifício de Abraão e Êxodo do Egito, até à plena libertação com a ressurreição de Cristo. Entoam-se solenemente o Glória e o Aleluia, omitidos durante a Quaresma. No batismo e na eucaristia, sacramentos pascais, que brotaram do lado de Cristo adormecido na cruz no sangue e água jorrados, os filhos da Igreja nascem e se alimentam, pois a Páscoa de Cristo é a nossa páscoa.
No domingo de Páscoa celebramos o “dia de Cristo Senhor” e repetimos com o salmista: “Este é o dia que o Senhor fez para nós” (Sl 117, 24). Proclamamos ao mundo a alegria da Páscoa e escutamos nas leituras o querigma pascal: Jesus Cristo, crucificado e morto, está vivo, e é o Senhor do tempo e da história. A ressurreição de Cristo, garantia da nossa ressurreição, é a grande verdade do Cristianismo, que jamais poderá ser esquecida, diminuída ou obscurecida. O crucificado é o ressuscitado. Esse dinamismo de passagem da morte à vida, deve realizar-se também em nós, pois se ressuscitamos com Cristo, devemos buscar as coisas do alto (Cl 3,1, segunda leitura da Missa de Páscoa), deixar morrer o homem velho e dar lugar ao homem novo, revestido da graça do Senhor. Os textos poéticos do Precônio Pascal (Exsultet) a da Sequência de Páscoa (Victimae Pascalis), como os outros cantos da Quinta e da Sexta-feira Santa, poetizam o Mistério Pascal e conduzem-nos à oração pela via da beleza.
As alegrias da Páscoa prolongam-se durante a Oitava e Cinquentena Pascal. Possamos nós, cristãos, sermos testemunhas dessa alegria, que brota da cruz e da ressurreição de Cristo, razão de nossa esperança, levando esse gáudio puro, sobretudo aos corações feridos e quebrantados, pois somos portadores da grande verdade cristã, que jamais caduca e da qual o homem tem sempre necessidade: Cristo está vivo e caminha conosco, porque ele mesmo é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6).
Seminarista Rodrigo Rêmulo




