Quarta-feira de Cinzas: ‘Deixai-vos reconciliar com Deus’

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Caríssimos irmãos e irmãs, em Cristo Jesus, graça e paz! O tempo litúrgico da quaresma nos recorda a passagem do Povo de Israel pelo deserto por quarenta anos. Tanto ainda, os quarenta dias em que Jesus foi provado no deserto. Quarenta anos é o percurso de duas gerações. É o surgir duma nova humanidade. As quatro dezenas de dias fazem ver o período duma profunda transformação no interior de um ser humano. Deus não deseja, apenas, renovar a humanidade, isso é muito subjetivo, Deus quer renovar a humanidade em cada um de nós, a minha e a tua humanidade. O número quatro e seus múltiplos se referem as fases da vida (criança, adolescente, adulto, idoso), ao suceder do tempo (primavera, verão, outono, inverno) e à orientação no espaço (norte, sul, leste, oeste). Enfim, a existência.

No deserto, diz o profeta Oséias, Deus fala ao coração. Ir ao deserto, na Sagrada Escritura, é buscar escutar a Deus na experiência do silêncio revelador da vontade de Deus. É deixar todas as outras coisas, as realidades e as situações falarem ao nosso silêncio. No silenciar, diz-nos um filósofo alemão, Martin Heidegger, o nosso ser é revelado, dado a conhecer, e sem usar palavras nem fazer barulho, saboreamos nossa existência na seu ser mais original, autêntico e verdadeiro.

Se há uma lei natural que rege exteriormente a existência, deve haver uma outra que a oriente internamente. E esta é simbolizada pelo deserto. O lugar da Palavra é o deserto. Somos ‘condenados a dar sentido à nossa existência’ (Friedrich Nietzsche), e isto ocorre no interior, no deserto do coração (lugar da decisão, onde Deus nos fala). O tempo da Quaresma, por isso, nos convida a ‘rasgar o coração, e não as vestes’, quer dizer, a ficarmos ‘atentos para não praticarmos a nossa justiça na frente dos homens, só para sermos vistos por eles’. Se a vida natural cresce de dentro para fora, ao mesmo modo, o sentido da existência autêntica. Nossas atitudes, portanto, precisam estar fincadas em ‘um coração que seja puro, em um espírito decidido’.

Como comunidade de fé, inseridos nessa fraternidade humana, deixemo-nos ‘reconciliar com Deus’ a fim de não recebermos ‘em vão a sua graça’. As palavras de Paulo nos fazem ver a quaresma como tarefa, ou seja, como exercício de liberdade. A graça exige uma permissão pessoal embora seja dom, pura gratuidade. Enquanto que a atitude de se permitir já é sinal do próprio dom de Deus agindo em nós. O salmista, após experimentar a graça de ser salvo, clama: ‘Ó Senhor, não me afasteis de vossa face, nem retireis de mim o vosso Santo Espírito’. O querer e o fazer deixam de ser forças contrapostas, contrárias entre si, para tomar uma mesma direção: o agora. ‘É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação’. Queiramos, pois, viver este tempo favorável. Busquemos a conversão do coração. Façamos nascer a autêntica vida cristã desde dentro, deixando para trás toda aparência, simulação, fingimento. Na quaresma precisamos superar os jejuns fajutos  (de pouca qualidade). Não comer doce, por exemplo, vai mudar em que tua vida e a do teu próximo, daquele que contigo está, ou de ti precisa? Tua saúde? Então, isso não é jejum, mas regime. As ações quaresmais estão na ordem do ver, do sentir compaixão e do cuidar. É sair de si, superar o egoísmo, vencer a arrogância, a prepotência, a autorreferencialidade. É se pôr a serviço dos perseguidos e marginalizados, é ser auxílio aos doentes e pecadores.

Quais serão os meus exercícios quaresmais? Busco no meu silêncio conhecer a vontade de Deus? 

Boa e abençoada quaresma!

 

Por: Padre George de Brito, Sacerdote diocesano e Pároco do Sagrado coração de Jesus, em Crato; Especialista em Filosofia Hermenêutica e Mestre em Teologia Dogmática.

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