2ª Carta Pastoral – Romarias e Reconciliação

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2ª Carta Pastoral – Romarias e Reconciliação

 

“Juazeiro tem sido um refúgio dos náufragos da vida.
Tem gente de toda parte que, modestamente,
vem abrigar-se debaixo da proteção da Santíssima Virgem.”
(Padre Cícero)

INTRODUÇÃO

Queridos Padres, Diáconos, fiéis leigos (as), religiosos (as), evangelizadores (as) da vida e da esperança, amados irmãos e irmãs, meus colaboradores e colaboradoras no anúncio e no serviço ao Reino de Deus em toda a nossa Diocese de Crato.

Com a graça de Deus, iniciamos, com muita alegria e esperança, este novo ano de 2003. Conduzidos pela luz da Estrela que aponta novos caminhos para o povo faminto de pão e de justiça, unimo-nos às expectativas e esperanças que movem, nesse momento, o nosso país e os homens e mulheres de boa vontade no mundo inteiro. Anima-nos, especialmente, que a nossa Igreja do Crato possa, nesse ano, progredir em seus anseios como discípula da Palavra, que, encarnando-se no seio de Maria, nos torna capazes de crescermos na unidade como Igreja Peregrina, Romeira no mundo, a caminho da plenitude da vida, com Maria, Mãe de Jesus e Mãe dos caminhantes.

Na minha primeira carta pastoral, ao assumir a Diocese de Crato, partilhei com vocês o desejo de reforçar os cuidados pastorais em favor dos milhares de irmãos e irmãs, na maioria absoluta pobres, romeiros e romeiras de Juazeiro do Norte, devotos de Nossa Senhora das Dores, que a memória do Padre Cícero Romão Batista reúne, de todo o Nordeste, nesta nossa Diocese.

Partilhei também, o propósito de encorajar e apoiar um novo estudo crítico sobre o padre Cícero, considerando tudo o que acontece em nossa Diocese por causa dele, em particular modo as romarias. Como ação concreta nesse sentido, realizamos uma série de reuniões com estudiosos que se debruçaram, intensamente com vistas de uma releitura dos documentos e textos produzidos, ao longo dos últimos anos, acerca do padre Cícero e do fenômeno das romarias em Juazeiro do Norte. Desejava, com isso, possibilitar um melhor conhecimento sobre esses assuntos para posicionar-me, como pastor, mais serenamente diante deles.

Em outubro de 2002, durante a visita ad limina dos bispos do Ceará e Piauí ao Vaticano tive a oportunidade de encontrar-me, junto com os Bispos do Ceará e Piauí, com o Cardeal Joseph Ratiznger – Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Na ocasião, apresentei um questionamento sobre qual atitude a Diocese de Crato deve manter frente à causa do padre Cícero e das romarias. Recebi, da parte do Cardeal Ratzinger, uma palavra de encorajamento para continuar com os estudos e de incentivo às romarias. Constata-se uma concordância de pareceres e inspirações nesse tocante, entre a orientação recebida no Vaticano e o resultado atual das reflexões em conjunto dos estudiosos com os padres da Diocese, reunidos em setembro passado. Ação do Espírito Santo? Creio que sim. As romarias, desse modo, além de serem incentivadas e reconhecidas pela Santa Sé, são para nossa Diocese, em especial modo, um convite da Providência de Deus para a nossa reconciliação histórica com as multidões de romeiros de Juazeiro que há mais de um século, provam a ousadia de sua fé como membros da Igreja Católica. Ao escrever esta carta pastoral, o meu objetivo principal é animar e encorajar esta nossa Diocese a olhar para frente, superando os impasses provindos da nossa história, a serem vencidos pela lógica evangélica do diálogo e da reconciliação.

Escrevo-lhes esta carta por ocasião da Romaria de Nossa Senhora das Candeias, considerando igualmente a realização recente do seminário de estudos sobre “Romarias e Santuários”, promovido por nossa Diocese junto com a Fundação Padre Ibiapina e inserido dentro do processo de reconciliação histórico-eclesial com o padre Cícero Romão Batista.

Por ocasião desta mesma romaria, em Juazeiro, nossa Igreja sintetiza, na fé dos seus romeiros e romeiras, tradições seculares que têm, nas Sagradas Escrituras, suas raízes mais profundas, pois é na Apresentação do Senhor no Templo que temos a origem da devoção a Nossa Senhora das Dores, padroeira de Juazeiro do Norte. Em Jerusalém, Simeão profetizou a Maria: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma” (Lc 2,35b). Jerusalém e Juazeiro se encontram para sempre e eternamente nessa tríplice celebração: a das Luzes (ou Candeias), a da Apresentação do Senhor e da Senhora das Dores. Realiza-se o que também foi profetizado por Simeão: “Serão revelados os pensamentos de muitos corações” (Lc 2,35a). Sob as luzes das candeias dos romeiros do Nordeste, Jerusalém e Juazeiro se encontram na mesma fé e na mesma esperança de paz e justiça. Em Juazeiro, os romeiros buscam a sombra acolhedora da árvore da vida, representada nas paredes e teto de  um santuário, casa de Maria e casa do povo que deseja a Salvação no Sagrado Coração de Jesus.

Olhando a multidão de romeiros, vem-me à memória o que já dizia o bispo Santo Agostinho no século V. Ele chamava a atenção dos seus ouvintes para reconhecerem os sinais de Deus na vida da comunidade.: “Procurai o mérito, procurai a causa, procurai a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a graça de Deus”. De fato, creio que no fenômeno das romarias, também em Juazeiro do Norte, nada mais podemos buscar e encontrar a não ser a graça de Deus que as suscita, promove e sustenta, alimentando a esperança e a fé de milhões de peregrinos.

Neste sentido, sou testemunha dos sentimentos que movem o povo romeiro a Juazeiro. Certa feita um romeiro me disse ao referir-se às suas motivações para fazer uma romaria: “Venho aqui a Juazeiro, terra do Padim Ciço, deixar os meus pecados, receber o perdão de Deus e buscar muitas graças para levar para casa”. Eis o desejo de viver e experimentar a misericórdia divina e um testemunho de que nas romarias os que delas participam buscam uma singela experiência de Deus. Uma experiência que passa, segundo a nossa fé cristã, pela conversão, pelo desejo de reconciliar-se com Deus e com os irmãos, na Igreja e com ela.

A RECONCILIAÇÃO NA IGREJA, PELA IGREJA E COM A IGREJA

Louvo a Deus pelo andamento dos trabalhos da comissão de estudos sobre o padre Cícero, por mim constituída com a colaboração do Setor Cultura da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Seu trabalho não tem prazo limite. O clero de nossa Diocese ratificou a necessidade de momentos de estudo e aprofundamento sobre a ação de nossa Igreja no acolhimento aos nossos irmãos e irmãs romeiros e romeiras. Além dos estudos, devemos reforçar nossas práticas pastorais que expressem a ternura e o carinho maternais da Igreja, sentimentos amorosos do Coração de Cristo que nos apresenta a reconciliação como uma atitude permanente do cristão.

Como pastor diocesano, convido a todos a estarem abertos aos impulsos e inspirações que o Espírito, por meio da realidade de nossa Igreja Particular, suscita entre nós. Ao aprofundarmos o conhecimento da história e obra do padre Cícero, a Diocese de Crato está tomando consciência de que, em sua missão pastoral, há de se reconciliar com o testemunho de vida do homem e sacerdote Cícero Romão Batista que, como Jesus e seus discípulos foi, é e será sempre sinal de contradição (Lc 2, 34).

Temos que ousar sempre um pouco mais. Temos que descobrir que para um cristão não existem limites mas horizontes. É como comunidade eclesial, nunca sozinhos, que podemos ousar passos mais largos, sempre que possível e necessário. Temos que ser humildes em reconhecer que as lições e iniciativas daqueles que nos precederam, seja como bispos ou presbíteros, não nos devem impedir de vislumbrar o horizonte e assumir as possíveis falhas humanas nas ações de uma Instituição que, em alguns momentos, se ateve de uma maneira ferrenha a uma tradição eclesiástica mais do que eclesial.

A Igreja nos lembra desde o Concílio de Trento no seu Catecismo Romano, editado em 1566, que não se deve acreditar nela como se acredita em Deus. E o Catecismo da Igreja Católica, aprovado e publicado em 1992 por João Paulo II, reafirma o postulado de Trento de que “fazemos profissão de crer uma Igreja Santa e não na Igreja, para não confundir Deus e as suas obras, e para atribuir claramente à bondade de Deus todos os dons que ele colocou na sua Igreja”.

Somos uma comunidade eclesial e a nossa diocese se reconhece como Igreja Católica, embora esta não esteja restrita às nossas fronteiras diocesanas. A nós, como Povo de Deus, nos compete lembrar de que temos uma missão e responsabilidade que ultrapassam os nossos limites pessoais e institucionais. E como Diocese temos a responsabilidade que atinge e envolve a Igreja no Brasil e, quem sabe, no mundo.

O nosso passo ousado para a reconciliação, como Igreja, com os romeiros e com o Padre Cícero, deve ser compreendido como parte do mesmo processo de reconciliação iniciado por João XXIII, ao abrir as janelas da Igreja para que entrasse o vento do Espírito Santo.
São suas as palavras proféticas e paradigmáticas: “Ao iniciar-se o Concílio é mais evidente do que nunca que a verdade do Senhor permanece eternamente. Com o suceder dos séculos os erros e as opiniões se anulam, dissipando-se como névoa ao nascer do sol. A Igreja, no passado, sempre se opôs aos erros e os condenou com grande severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere recorrer ao remédio da misericórdia a usar as armas do castigo”..

O papa Paulo VI, no seu discurso de abertura do segundo período do Concílio, homenageia João XXIII com as palavras que desejamos sejam as nossas neste momento, quiçá histórico, para a nossa Igreja do Crato, do Brasil e do Mundo: “Além disso, no que respeita ao magistério eclesiástico, papa João, você confirmou a posição segundo a qual a doutrina cristã não é verdade a ser buscada unicamente pela razão, ainda que à luz da fé, mas palavra de vida que gera uma atitude concreta”.

Para mim, bispo diocesano de Crato, em nenhum momento a reconciliação significa um juízo ou um julgamento precipitado dos fatos ocorridos nesta nossa diocese. Inspirados no Vaticano II, a exemplo do Papa Paulo VI, queremos com alegria e fidelidade a Cristo em tudo o que há de mais importante, estar comprometidos com a plena disposição de “corrigir os erros eventuais provenientes da fraqueza humana”.

Para nós, como para o Papa Paulo VI, reconciliação não é uma ruptura com as tradições da Igreja, no que têm de mais vigoroso e venerável; pelo contrário, “é uma tentativa de melhor respeitar a tradição, despindo-a de formas caducas e mentirosas, em favor de modos mais genuínos e fecundos de vivê-la”.

A celebração recente dos dois mil anos do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo e a preparação das celebrações do início do terceiro milênio, continuam sendo para toda a Igreja, um convite à conversão e à reconciliação. O Santo Padre João Paulo II, em diversos momentos, expressou enfaticamente o seu desejo e a exigência evangélica de a Igreja purificar-se de ações e atitudes que, no passado, foram contra-testemunhos da fé que professa. O papa, em nome da Igreja, buscou a reconciliação, com Deus, por intermédio da confissão pública dos erros praticados e da reconciliação com grupos e povos ofendidos, com toda a humanidade atingida por atitudes injustas de filhos da Igreja.

O Espírito Santo nos ilumina hoje, fazendo-nos perceber a nós, Diocese de Crato, que a reconciliação tem um movimento de reciprocidade: reconciliação do clero com nossos romeiros e peregrinos, reconciliação do Padre Cícero com a sua Igreja; reconciliação da história com o Padre Cícero.

Devemos anunciar ao mundo que a reconciliação é um modo peregrino e romeiro de viver a fé. A história da Igreja é um processo e uma construção que nos coloca sempre diante de novos horizontes desde que não tenhamos medo de refletir sobre o passado nem fugirmos dos desafios que nos aponta o futuro. Por esta razão, nesta Carta Pastoral,  quero inspirar-me na carta de Paulo aos Filipenses, como uma exortação para todos nós, romeiros e romeiras na Igreja Peregrina do Crato:

Se algum poder tem uma exortação em nome de Cristo, ou um consolo afetuoso, ou um espírito solidário, ou a ternura do carinho, levai à plenitude minha alegria, sentindo as mesmas coisas, com amor mútuo, concórdia e procurando as mesmas coisas. Nada façais por ambição ou vanglória, mas com humildade tende os outros como melhores. Ninguém procure o próprio interesse, e sim o dos outros. Tende os mesmos sentimentos de Cristo Jesus (Fil 2, 1-4).

Para tanto, convido a todos para que, desarmando os espíritos, purifiquemos a nossa memória numa reconciliação com os nossos romeiros e romeiras, peregrinos e peregrinas acolhendo-os com os sentimentos amorosos do Coração de Cristo. Partilhar dos mesmos sentimentos de Jesus é também ser sensível aos olhares e atitudes da Virgem Maria que, em sua relação com os romeiros e romeiras, volta para estes um olhar de solicitude maternal e deles recebe o olhar de confiança filial.

O OLHAR DE MARIA E DOS ROMEIROS

Seguindo os passos do padre-mestre Ibiapina, padre Cícero foi, no seio do Nordeste, um incansável apóstolo da devoção à Virgem Maria e do seguimento fiel ao Jesus de Nazaré, o homem das Dores, a luz do mundo, coração aberto para todos.

Fruto de sua formação no seminário e da espiritualidade do seu tempo, três foram os grandes eixos da ação pastoral de padre Cícero e da sua vida de fé: a dimensão eucarístico-sacramental por meio da Eucaristia e da Reconciliação, cuja fonte está no Sagrado Coração de Jesus; a vivência da compaixão e solicitude para com os sofredores – tradução do amor filial à Virgem Maria, invocada sob o título de Nossa Senhora das Dores; e, finalmente, o amor ao Santo Padre, como expressão de fidelidade à Igreja, apesar de todas as dificuldades que o padre Cícero experimentou em sua relação com a Igreja Local.

Padre Cícero preocupava-se em incentivar o povo a compreender que a vivência da fé havia de ser realizada também nos lares, transformando-os em verdadeiros santuários e oficinas, tendo a oração – especialmente o rosário da Mãe de Deus – e o trabalho como referências fundamentais para a vida cristã. Esses conselhos foram acolhidos pelos romeiros que os assumiram como orientação fundante em suas vidas de peregrinos. Desta forma, no silêncio de sua espiritualidade, este mesmo povo eleva um clamor a Deus para que possa viver com dignidade e justiça, como povo de Deus, livre do mal do egoísmo que gera miséria e exclusão. Não podemos fechar nossos olhos nem tapar nossos ouvidos para este clamor.

Semelhante ao Êxodo do povo de Israel em vista do Sinai, o caminho da Igreja é uma peregrinação, uma romaria, marcada pela partilha dos dons e dos sentimentos e percorrida no sincero desejo de quem busca a paz. O povo de Israel foi chamado por Deus para percorrer as trilhas de um pacto, de uma legítima e divina Aliança: “Vós sereis o meu povo. Eu serei o vosso Deus”. Ao seu lado, Ele é Emanuel – Deus-conosco, Príncipe da Paz, Deus Forte. E o povo da Aliança torna-se luz entre as nações.

A Virgem Maria, mãe de Cristo e da Igreja, é a arca da Nova Aliança, sinal do “novo povo”, a Igreja, que compartilha das dores, angústias e esperanças de toda a humanidade. Ela é a Mãe da Luz Verdadeira, Jesus Cristo, luz do mundo, que ilumina toda pessoa. Na Festa das Candeias, nosso povo em romaria, ao amor dedicado a esta Mãe que jamais abandona seus filhos e filhas, sejam eles quem forem, venham de onde virem, une o compromisso de também – com Cristo, em Cristo e por Cristo – serem luzeiros no reinado do Deus da vida. Assim, o povo romeiro encontra em Maria o colo acolhedor da mãe que conhece os sentimentos e as esperanças de seus filhos e filhas.

Com Maria, aprendemos a olhar o nosso povo romeiro e a nossa Igreja peregrina não mais separados, mas profundamente unidos pelos mesmos sentimentos de Cristo Jesus.

Como Maria, os romeiros e romeiras, em permanente peregrinação, olham para Jesus com um olhar de confiança e de entrega. Algumas vezes, com um olhar interrogativo, ao procurarem compreender as próprias vidas, meditando em seus corações os acontecimentos do seu dia-a-dia, assim como tentando decifrar os mistérios da ação divina na história humana.
Como Maria, também lançam um olhar penetrante, tocando o coração de Jesus para perceber os sentimentos que dele brotam na compaixão de quem acompanha o seu povo como rebanho conduzido a verdes pastagens. Outras vezes ainda, um olhar doloroso, ao identificarem o seu sofrimento com o de Cristo que, de braços abertos na cruz, amou todo o mundo dando a sua vida, até as últimas conseqüências. Mas, sobretudo, o nosso povo na sua esperança inabalável em Deus, tem, como Maria, um olhar radioso, pela alegria da humilde certeza de ser destinatária do amor divino que elege os pequenos. Por fim, um olhar ardoroso, pela confiança no Espírito que conduz este povo nos caminhos da história, apesar de tudo, para a plenitude do Reino de Deus, na graça da Ressurreição.

De modo particular, neste Ano do Rosário – promulgado pelo Papa João Paulo II e que se estende até outubro próximo vindouro – esta troca de olhares entre a Virgem Maria, seu filho Jesus e a humanidade  é tradução do carinho, ternura e cumplicidade da ação do Espírito divino. A espiritualidade cristã tem, como caráter qualificador, o empenho do discípulo em configurar-se sempre mais com o seu Mestre. Pelo Sacramento do Batismo, cada pessoa é inserida e acolhida no seio do povo de Deus e no coração do próprio Deus que a deseja mais próxima de si. É preciso revestir-se de Cristo, como o fez Maria Santíssima e os Apóstolos, para sentir com Ele, sonhar com Ele, amar com Ele. Tal atitude conduz à prática da caridade, da solidariedade, da compaixão no cotidiano da história. Ao contemplarmos os diversos mistérios do Rosário, como nos lembra o Santo Padre, devemos fazê-lo com o desejo de fixarmo-nos no próprio Cristo, em sua Encarnação, em seu ministério, em sua missão, em sua paixão, em sua ressurreição. Ao olhamos para a vida de Maria, procuremos vislumbrar a verdadeira Luz.O Rosário, no dizer do papa João Paulo II, transporta-nos misticamente para junto de Maria dedicada a acompanhar o crescimento humano de Cristo na casa de Nazaré. Isto permite a Maria educar-nos e plasmar-nos, com a sua mesma solicitude, até que Cristo esteja formado em nós plenamente (cf. Gl 4,19) . Devemos acolher o Rosário como um itinerário de anúncio e aprofundamento da fé, no qual o mistério de Cristo é continuamente oferecido a todos.

Como cristãos e cristãs somos chamados a acolher o Evangelho, o Verbo de Deus que é Boa Nova que se encarna na história. Neste sentido, o Rosário pode ser considerado um verdadeiro compêndio do Evangelho, por isso, depois de recordar a encarnação e a vida oculta de Cristo (mistérios da alegria), e antes de se deter nos sofrimentos da Paixão (mistérios da dor), e no triunfo da ressurreição (mistérios da glória), a meditação deve-se concentrar também sobre alguns momentos particularmente significativos da vida pública de Jesus (mistérios da luz). Padre Cícero, como fiel discípulo dos seus mestres e filho da Igreja, apresentava o Rosário da Mãe de Deus como o caminho e o escudo de proteção. Particularmente diante do fato de serem milhares aqueles e aquelas que eram analfabetos, o Patriarca de Juazeiro sabia que a meditação dos mistérios do Rosário seria uma forma acessível de educação da fé.

A devoção à Mãe de Deus, invocada sob diversos títulos e nomes, é característica singular da piedade popular nos sertões nordestinos. A Virgem da Conceição, Senhora do Desterro, do Bom Parto, Auxílio dos Cristãos, Virgem de Lourdes, Mãe Aparecida, Mãe do Belo Amor, Senhora da Penha… é a mesma mãe que acompanha e intercede pelos seus filhos e filhas.
Entre nós, invocada sob o título de Nossa Senhora das Dores, a Virgem Maria, Mãe de Deus e da humanidade, compartilha as dores do parto de uma sociedade nova. As Romarias em Juazeiro, particularmente no círculo das festas de setembro (Nossa Senhora das Dores), novembro (Festa de Finados) e fevereiro (romaria de Nossa Senhora das Candeias) deixam emergir os sentimentos mais profundos e arraigados no coração dos romeiros e romeiras. O mistério da comunhão na dor aponta para a comunhão na esperança e na crença em uma civilização do amor.

A PEREGRINAÇÃO DAS ROMARIAS

“Feliz quem encontra em ti sua força e decide no seu coração a santa viagem” (Sl 84,6).

Mais do que nunca é necessário reconhecer as romarias de Juazeiro do Norte como uma profunda experiência de Deus e legítima experiência de fé. E nós, bispo e seu presbitério, devemos assumir um compromisso pastoral, expressão do acolhimento do Bom Pastor e da ternura maternal da Igreja para com os romeiros e romeiras.

Toda a nossa tradição judaico-cristã é marcada pela peregrinação. As peregrinações dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó a Siquém (Gn 12, 6-7; 33, 18-20) Betel (Gn 28,10-22; 35,1-15) e Mambré (Gn 13, 18; 18, 1-15) onde Deus se manifestou e se comprometeu a lhes dar a Terra Prometida. Para as tribos saídas do Egito, o Sinai (monte da manifestação de Deus – teofania – a Moisés) se converte num lugar sagrado. Finalmente, a cidade de Jerusalém, convertida na sede do Templo e da Arca da Aliança, passou a ser a cidade-santuário dos hebreus, a meta da desejada viagem santa (Sl 84,6), na qual o peregrino avança “entre cantos de alegria e de louvor de uma multidão em festa” (Sl 42,5) até a Casa de Deus para comparecer à sua presença (Sl 84, 6-8).

A peregrinação ao Templo fazia parte de toda a piedade popular de Israel. Os salmos de peregrinação exprimem a espiritualidade de um povo que jamais poderia esquecer no seu coração que seu pai Abraão era um arameu errante… (Dt 26,5b).

Junto aos pórticos do Templo, os peregrinos se perguntavam “Senhor, quem poderá habitar na tua tenda?” e ouviam a resposta dos sacerdotes “Aquele que vive sem culpa, age com justiça e fala a verdade no seu coração; que não diz calúnia com sua língua, não causa dano ao próximo e não lança insulto ao vizinho, se empresta dinheiro é sem usura e não aceita presentes para condenar o inocente” (Sl 15).

O salmo 24, na chegada ao Templo, era um hino de ação de graças: “Do Senhor é a terra com o que ela contém, o universo e os que nele habitam”. O salmo 48 rendia graças pela permanência, em Jerusalém, a Cidade Santa: “Rodeai Sião, girai em torno dela, contai suas torres. Contemplai suas muralhas, passai em revista suas fortalezas, para narrar às gerações futuras: Este é Deus, nosso Deus, para todo sempre: é ele que nos guia”.  Os peregrinos e peregrinas, os romeiros e romeiras da Cidade Santa dela se despediam cantando o salmo 121 – o cântico das romarias, invocando a proteção divina contra os perigos do caminho de volta para casa: “O Senhor te preservará de todo o mal, preservará a tua vida. O Senhor vai te proteger quando sais e quando entras, desde agora e para sempre”.

20. Jesus nasce sob o signo da peregrinação e da romaria. A ele chegam de todas as partes do mundo as homenagens e louvores simbolizados pelos Três Reis Magos. Com seus pais José e Maria em peregrinação, foi Jesus apresentado no Templo de Jerusalém, festa cuja memória celebramos com a Romaria de Nossa Senhora das Candeias. Durante sua vida pública, também Jesus se dirigia habitualmente a Jerusalém como peregrino (Jo 11,55-56) e toda a sua travessia  foi uma peregrinação a caminho do santuário celeste.
Este mesmo Jesus testemunha a sua ressurreição ao partir o pão e ao abrir os olhos e os corações dos discípulos peregrinos, como Ele, no caminho de Emaús (Lc 24, 13-35).

Precisamente, durante uma reunião de peregrinos em Jerusalém, de “judeus observantes de toda nação que existe debaixo dos céus” (At 2,5) para celebrar Pentecostes, a Igreja começa seu caminho missionário e peregrino. E se proclama a si mesma “peregrina neste mundo”.

Desde então, a Igreja soube reconhecer e valorizar o que o ato peregrino cristão representa de abertura ao espaço, à natureza e ao cósmico. O poder das grandes concentrações, o cerimonial processional e a oração coletiva inscrita num espaço onde se podem viver os ritos milenares da liturgia peregrina e romeira. Esta liturgia é expressa, sobretudo, no gestuário romeiro e peregrino: ritos de oração corporal nos braços em cruz e nas prostrações; ritos penitenciais silenciosos vivenciados nos pés nus e nas genuflexões; ritos de propiciação pela multiplicação de exercícios piedosos e oferendas; e ritos de ligação permanente com o lugar sagrado por meio de ex-votos. E ainda, uma coisa comum e milenar vivida pelo povo romeiro e peregrino, as inscrições – nomes, datas, graças recebidas – gravadas como um selo nos espaços venerados, fazendo assim uma aliança de mistério entre o romeiro peregrino e Quem o acolhe e o consola.

A Igreja Particular do Crato, nesta sua secular romaria e peregrinação, é marcada, como outros espaços da Igreja no mundo, pela força e densidade da experiência religiosa coletiva e individual.

O tempo peregrino e romeiro é o tempo da graça.

Este tempo é vivido no abandono da rotina do dia-a-dia para se conquistar uma experiência extraordinária e do Outro. É o tempo oportuno, o tempo da liberdade. A partida romeira e peregrina, já é, em si mesma, um ato de fé, de esperança e de busca. A decisão de ir até o fim do caminho cria um espaço interior e pessoal de acolhida, no qual as dificuldades encontradas e sua superação representam, no coração dos romeiros e peregrinos, uma vitória sobre as hostilidades do mundo impostas socialmente às suas vidas. É o tempo do mistério. Sair de sua acomodação e se colocar a caminho é a expressão mais perfeita de uma Igreja peregrina e romeira.

No caminho, tudo se torna lugar de devoção. É um caminho sagrado onde cada passo alimenta o espírito e testemunha a sua coragem de alcançar, pela perseverança, a última etapa deste mesmo caminho e travessia.
Em meio aos cantos e orações, o instante passa e a solidariedade, o consolo afetuoso e a ternura do carinho acontecem…

E, ao perceberem, num distante próximo, o lugar de sua chegada, seus corações são invadidos por uma incomensurável alegria plena de graça e emoção.

O símbolo maior da peregrinação e romaria de Juazeiro é expresso na transitoriedade de toda a situação, no desapego interior dos romeiros e romeiras, em relação ao presente, e na sua abertura ao futuro para eles concretizado na esperança de se encontrarem no próximo ano para dar graças e louvar Jesus, pela mediação e intercessão de sua Mãe, nossa Mãe e Mãe da Igreja.
Os romeiros e peregrinos fazem a sua peregrinação sem luxo nem ostentação e seu chapéu de palha é o sinal comum de sua resistência e despojamento, a exemplo do Padre Cícero.
Nestas romarias e peregrinações se concretiza a inspiração do livro de Eclesiastes: “Deus está no-instante-que-passa” (Ecl 3, 15).

Nunca é demais lembrarmos o que o Papa Paulo VI escreveu sobre a evangelização no mundo contemporâneo e que sintetiza a piedade popular do nosso povo romeiro e peregrino:

Ela traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar; ela torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé; ela comporta um apurado sentido dos atributos profundos de Deus: a paternidade, a providência, a presença amorosa e constante, etc. Ela, depois, suscita atitudes interiores que raramente se observam alhures no mesmo grau: paciência, sentido da cruz na vida cotidiana, desapego, aceitação dos outros, dedicação, devoção, etc. Em virtude destes aspectos, nós chamamos-lhe de bom grado ‘piedade popular’ no sentido de religião do povo, em vez de ‘religiosidade’”.

O Papa João Paulo II na sua Carta Apostólica Vicesimus Quintus Annus, comemorando os vinte e cinco anos da Constituição do Concílio Ecumênico Vaticano II sobre a Liturgia, nos lembra que:
a piedade popular não pode ser nem ignorada nem tratada com indiferença ou desprezo, porque ela é rica em valores e por si mesma expressa a atitude religiosa diante de Deus; mas necessita ser continuamente evangelizada para que a fé que expressa chegue a ser um ato cada vez mais amadurecido e autêntico. Tanto os exercícios de piedade do povo cristão, como as outras formas de devoção são acolhidos e recomendados, sempre que não substituam e nem se mesclem e se misturem com as celebrações litúrgicas. Uma autêntica pastoral litúrgica saberá apoiar-se nas riquezas da piedade popular, purificá-la e orientá-la até a Liturgia como uma oferenda dos povos.

Temos que aprender a lição que nos é dada nestes anos todos pela fé e perseverança dos romeiros e romeiras de Juazeiro, peregrinos e peregrinas da Igreja..

Em torno das romarias, muito se tem falado. Ultimamente, as reflexões giram em torno da compreensão, a meu ver restrita, do chamado “turismo religioso”. Evidentemente os governos municipais e estadual podem e devem esforçar-se por propugnar que os municípios e o Estado, como um todo, estejam aptos a acolher bem os turistas, oferecendo-lhes lazer, sob os mais diversos prismas. Contudo, romeiros e turistas religiosos não são sempre componentes do mesmo grupo, pois os primeiros – singularmente em Juazeiro do Norte – mesmo tendo a romaria, as missas e peregrinações como festa e motivo de alegria, seguem um esquema e um rito singular naquele que consideram como um espaço sagrado. A cidade de Juazeiro do Norte é vista, costumeiramente, como uma cidade-santuário, a Terra da Mãe de Deus.

Romeiros e peregrinos, em Juazeiro, na sua expressão popular de fé cristã, visitam a Igreja Matriz de N. Sra. das Dores, o cemitério do Socorro, a Igreja de São Francisco (com o “Passeio das Almas”), o Caminho e a Colina do Horto, o Santo Sepulcro, entre outros lugares. Cada passo compõe, e também o seu conjunto, um legítimo itinerário peregrino de fé e piedade popular, uma tradução reconhecida da práxis cristã na perspectiva do sensus fidei  segundo a espiritualidade nordestina.

Nesse mesmo campo, interagem a discussão e os projetos do turismo religioso. Podemos ousar afirmar que almejamos um certo tipo de turismo religioso: aquele que aprimora a dignidade da pessoa humana, oferecendo água de qualidade, saneamento básico, habitação digna para os que aqui moram e para com os que vêm, seguindo os conselhos expressos em atitudes e palavras do padre Cícero. A cidade de Juazeiro do Norte, como um espaço singular da experiência nordestina de fé cristã, precisa ter em conta que os romeiros e romeiras, peregrinos e peregrinas que a ela se deslocam são seres humanos que experimentam, diariamente, a exclusão, pois estão colocados à margem do processo que ora vivemos da globalização do poder e da renda concentrados nas mãos de poucos.

Portanto, a Pastoral da Romaria ultrapassa, e muito, o mero turismo religioso voltado somente à grandiosidade das obras que servem mais ao espetáculo da mídia e às vaidades, aos interesses comerciais e ao lucro enganoso e explorador, do que ao aprofundamento  espiritual e religioso do povo. Ou seja, cremos poder dar a nossa contribuição, especialmente com fundamentos éticos e morais,  às diversas proposições públicas de centros de apoio aos romeiros. Consideramos importante que os romeiros não sejam vistos exclusivamente, como parte de um processo econômico, dentro de um sistema orgânico de relações de produção e consumo, num viés economicista que é, sobremodo, excludente, restritivo e simplista.

No caso de nossas comunidades paroquiais, estas podem e devem encontrar nas primeiras comunidades apostólicas um exemplo e modelo. Efetivamente, elas eram casas acolhedoras para a realização integral de homens e mulheres. Nos primórdios da vida da Igreja, as comunidades dos discípulos de Jesus confrontavam-se com práticas que lhes questionavam a própria fé. Elas reconheceram, na memória da história do povo de Israel e das ações de Jesus de Nazaré, a iniciativa do próprio Deus na busca do diálogo com a humanidade, porque a ama e deseja salvá-la. Era essa memória que lhes animava à vivência da profissão de fé.

São características próprias da cultura de nosso povo a sensibilidade religiosa e a acolhida fraterna. Os primeiros missionários religiosos e figuras emblemáticas, como o padre Ibiapina e padre Cícero, prezaram bastante o acolhimento a todos. Dessa forma, atualiza-se o mandamento do Senhor: “amai-vos uns aos outros”, pois o mesmo  Jesus “veio para servir e não ser servido”. O momento atual nos leva questionar-nos: o clero, os religiosos e religiosas, os leigos e leigas de nossa Igreja Particular, que contribuição podem dar à Pastoral da Romaria? Como acolher aqueles que atravessam nossas cidades, em direção ao encontro com Deus, em Juazeiro do Norte? E, além daqueles que ultrapassam nossas fronteiras, como defender os direitos dos cidadãos e cidadãs, igualmente membros de nossa Diocese?
Tenho confiança em que todos os membros de nossa Diocese não se omitirão neste processo de reconciliação. A fé no Deus Vivo há de impulsionar-nos a perceber sua presença misericordiosa, seus braços abertos para o acolhimento e aconchego, tal qual casas e santuários de portas abertas para a comunhão.

SANTUÁRIO, MEMÓRIA,

PRESENÇA  E  PROFECIA  DO  DEUS  VIVO

Padre Cícero incentivava o povo a compreender que a vivência da fé havia de ser realizada também nos lares, verdadeiros santuários e oficinas. Ele guardava, na memória e no coração, os ensinamentos de padre Ibiapina que, por sua vez, traduziu, em uma linguagem própria do povo nordestino, as lições e a espiritualidade de São Bento do “orar e trabalhar”.

Os santuários, tão significativos na vida da Igreja, caracterizam-se por formas originais e práticas de devoção, entre os quais se destacam a peregrinação e a romaria. Seja em caráter individual ou coletivo, oficial ou popular, é próprio da fé cristã o caminhar. As raízes dessa prática de fé encontram, no cristianismo, sua origem na tradição bíblica do Êxodo. Nos santuários, também, celebramos a compaixão do Senhor, a exemplaridade e a intercessão da Virgem e dos outros santos. São, por si mesmos, lugares que irradiam a luz e o calor. Neles são realçadas as virtudes teologais: fé, esperança e caridade.

Na sua concepção mais comum e na linguagem dos mais humildes e simples, a caridade é o amor expressado em nome de Deus. Esta caridade encontra suas manifestações concretas no acolher, na misericórdia, na solidariedade, na partilha, na ajuda e no dom. Caridade que se experimenta igualmente na vida que se faz oração nos sacramentos da Igreja acolhidos e celebrados nos templos. Alguns templos são considerados importantes pela veneração que lhe devotam os cristãos, seja pela sua importância histórica ou ainda pela beleza artística de sua arquitetura, e são denominados “santuários” (locais, diocesanos, regionais, nacionais, internacionais) e/ou basílicas menores ou maiores.

A Igreja Matriz da Mãe das Dores, em Juazeiro do Norte, lugar de veneranda celebração de todos os romeiros e romeiras do Nordeste, é agora elevada à dignidade de Santuário Diocesano. Acalentava também a esperança de comunicar solenemente nestes dias, Festa de Nossa Senhora das Candeias, o decreto pontifício da concessão do título de Basílica Menor à Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, por mim já solicitado à Santa Sé em novembro passado. Infelizmente, tal decreto ainda não chegou de Roma.
No espaço sagrado dos Santuários e Basílicas, se realizam as grandes concentrações de fé onde nosso povo louva e recebe as bênçãos de ternura da Mãe de Deus. A Basílica Menor e Santuário Diocesano de Nossa Senhora das Dores é, para nós, um reconhecimento profético do que significa este título para nossa experiência nordestina de povo de Deus. O termo “basílica” vem de Basileus, que significa Rei. O papa confere este título às igrejas que são consideradas importantes pela veneração que lhe devotam os cristãos. A Basílica simboliza a comunidade eclesial como Reino de Deus.

O Santuário “é, antes de tudo, lugar da memória da ação poderosa de Deus na história, que está na origem do povo da aliança e da fé de cada um dos crentes”. Ele é a memória eficaz da obra de Deus, sinal visível quão grande ele é no amor e testemunha como foi Ele que nos amou primeiro (cf. Jo 4,19) e quis ser o Senhor e Salvador de seu povo. O Santuário testemunha que Deus é maior do que o nosso coração, que nos amou desde sempre e nos deu o seu Filho e o Espírito Santo, porque quer habitar em nós e fazer de nós o seu templo e, dos nossos membros, o santuário do Espírito Santo (cf. 1Cor 3,16-17).

Mistério, ação de graças e memória – três perspectivas fundamentais ligadas à existência dos santuários

Mistério: obra de Deus no tempo, manifestação de sua presença eficaz escondida sob os sinais da história. Aproximamo-nos do Mistério com uma atitude de admiração e adoração, com um sentido de maravilha diante do dom de Deus. Para dele nos aproximarmos, precisamos preparar-nos nas etapas do caminho da peregrinação (Cf. Sl 120;134); no comportamento respeitoso, na escuta da Palavra, na oração e na celebração dos sacramentos.

Ação de graças: entramos no santuário, antes de tudo, para agradecer, conscientes de que fomos amados por Deus antes que fôssemos capazes de o amar. “Os santuários constituem nesse sentido uma excepcional escola de oração, onde especialmente a atitude perseverante e confiante dos humildes testemunha a fé na promessa de Jesus: Pedi e dar-se-vos-á (Mt 7,7)”. Neles, somos convidados a recordar que a alegria da vida é, antes de tudo, fruto da presença e ação do Espírito Santo, sob cujo impulso fazemos, de nossas vidas, uma perene ação de graças ao Pai no Filho. Disto a Virgem Maria é o modelo por excelência: ela, numa atitude de ação de graças, “soube deixar-se cobrir pela sombra do Espírito para que nela o Verbo fosse encarnado e dado aos homens”.

Memória: as atitudes de admiração e de ação de graças, no santuário, nos indicam e recordam que a vida nunca deve prescindir da partilha e do empenho pelos outros. “O santuário nos recorda o dom de um Deus, que de tal modo nos amou que construiu a sua tenda no meio de nós, para nos trazer a salvação, para se fazer companheiro da nossa vida, solidário com o nosso sofrimento e com a nossa alegria”. Para nada serviria viver o “tempo do santuário”, se este não nos impulsionasse e impelisse ao tempo da estrada, ao tempo da missão e ao tempo do serviço.

Animados pela mística do santuário, os romeiros de Juazeiro do Padre Cícero buscam, em todos os recantos da “Terra da Mãe de Deus”, a experiência que nos santuários é vivida intensamente. Também no Horto, o casarão onde repousava o padre Cícero é visto como um testemunho vivo do Patriarca de Juazeiro, nos evocando a manter a simplicidade e despojamento, características peculiares do estilo nordestino de viver a fé cristã. Naquele lugar o padre Cícero desejou concretizar sua fé, no Coração de Jesus, através do cumprimento de sua promessa na construção de um templo onde pudesse também celebrar a Eucaristia. Não lhe foi possível fazê-lo. Entretanto, fez de sua casa um lugar de acolhimento e repouso, cujo caminho distinguia-se por ser também um percurso de penitência e conversão. Mensagem que foi compreendida por seus afilhados e devotos.

Hoje, como no passado, os romeiros e romeiras, de Juazeiro do Norte, são homens e mulheres que anseiam renovar a esperança de habitar numa sociedade diferente onde possam ser valorizados por aquilo que são e nunca mais por aquilo que têm, ou melhor, não têm.
São homens e mulheres que, no seu dia-a-dia, estão aos pés da Cruz como Maria contemplando com ela o seu Filho que agoniza, suspenso, naquele madeiro, como um condenado. Um homem das dores como proclamava o profeta Isaías (Is 53, 3ss). Ela, Maria, uma mulher das dores identificada com o seu Filho agonizante, mas obediente na fé diante dos insondáveis desígnios de Deus.

Pela sua fé, este povo, como sua Mãe Maria, está perfeitamente unido ao Cristo no seu despojamento. Este povo se abandona, como sua Mãe Maria, nas mãos de Deus, sem reservas. E este mesmo povo ouve a Palavra de Deus e procura praticá-la (Lc 11,28) e por isto mesmo os romeiros e romeiras, os peregrinos e peregrinas de Juazeiro se tornam, a cada nova peregrinação, a Mãe, os irmãos e irmãs de Jesus. “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8, 20-21).
O nosso povo peregrino, no Santuário da Mãe das Dores, testemunha o que Santo Agostinho escreveu: “Cristo é verdade, Cristo é carne: Cristo é verdade no espírito de Maria, Cristo é carne no seio de Maria” (Sermão 25).

CONCLUSÃO

Padre Cícero nos deixa como herança e legado o testemunho de que o Evangelho nos revela um amor que não conhece limites nem definições restritivas. Ele leva aquele que ama a ponto de desistir da própria vida pelo bem dos outros. Ele vai acima e além da linha do dever. É claro, isto é extravagante e absurdo, mas o Reino de Deus é para as aventuras da fé. Não é uma recompensa para a mediocridade.

Aprendemos tudo isto com a história da Igreja do Crato, com as suas contradições e versões. Mas aprendemos mais ainda com a perseverança e a ousadia desafiadora dos romeiros e romeiras que mantiveram esta tradição quase secular como um testemunho de devoção a Maria, mantendo viva a lição aprendida do Padim Ciço.

Temos que aprender ainda com a voz da tradição eclesial. E não há maior lição do que a dada pelo doutor da Lei, Gamaliel, quando Pedro e alguns apóstolos foram levados diante do Conselho do Templo para serem condenados à morte:
“Se este projeto ou esta atividade é de origem humana, será destruído. Mas, se vem de Deus não conseguireis destruí-los. Não aconteça que vos encontreis combatendo contra Deus” (At 5, 38-39).

Continuemos nossa caminhada e travessia com o aprofundamento de uma Pastoral da Romaria. Faço um apelo e convido toda a nossa Igreja diocesana e nossa sociedade civil a manter uma dupla sensibilidade:

1)    que a Diocese de Crato assuma com amor e dedicação eclesial as romarias de Juazeiro e tantas outras que possam surgir nos recantos das nossas igrejas e capelas. Abrigar em nosso coração e em nossas casas, varandas ou quintais os romeiros e romeiras que enfrentam esta longa viagem para louvar a nossa Mãe comum. Dar água a quem tem sede e pão a quem tem fome é praticar o amor fraterno, condição primeira e única de nossa salvação (Mt 25, 31-40);

2)    que não confundamos a Pastoral da Romaria com o “turismo religioso”. Eis o desafio para a sociedade como um todo. Nós, Igreja e Sociedade, devemos estar conscientes de que a história nos cobrará pelas nossas decisões, a nós que podemos e devemos oferecer mais do que recebemos. Qualquer projeto desenhado não poderá, em hipótese alguma, ser pensado e decidido por uma pequena parcela de pessoas mas deve envolver a participação de todos. A manipulação do povo é arte que cabe aos filhos das trevas que, pelo Evangelho, são mais espertos nos seus negócios do que os filhos da luz (Lc 16, 8b).

Nosso povo exige mais do que uma transparência porque o transparente não se vê. Nosso povo exige e tem o direito a uma visibilidade de tudo aquilo que, em seu nome, ou no nome do Padre Cícero, fazemos ou fazem não importa qual boa intenção ou razão.

Reconciliado e em comunhão com todos os que nos precederam, como povo de Deus, quero abençoá-los com todo o consolo afetuoso, o espírito solidário e a ternura do carinho tão marcantes em Jesus de Nazaré, o Cristo, como no nosso querido Padim Ciço.

Com nossos corações e vidas em festa, imploremos as bênçãos da Mãe do Belo Amor:

Maria, Mãe da Ternura!

Tu que és amada por todos e te fazes querida em nomes de Amor e Misericórdia; Tu que és negra como Aparecida, morena como Guadalupe e branca como Fátima, abrigues no teu coração abrasado pelo sol do Nordeste teus romeiros e romeiras  de quem alivias os penares.
Permita-nos, ó Mãe-de-Mil-Nomes, chamar-te Das Dores, porque no teu ventre geraste o Servo Sofredor que redimiu o mundo e toda a humanidade pelo seu Amor. Amada Filha do Pai, amada Mãe do Filho, amada Esposa do Espírito faze-nos perseverar nas sendas e veredas dos sertões, de todas as partes destes brasis, para que possamos glorificar a Trindade que se revela na solidária comunhão pela prática do amor fraterno.
Amém.

Mais do que nunca, Igreja Romeira do Crato: Sursum Corda – Corações ao Alto!

Crato, 2 de fevereiro de 2003, Festa da Apresentação do Senhor.

Dom Fernando Panico, msc

Bispo Diocesano de Crato

Sermões 185: PL 38, 999

Catecismo da Igreja Católica, item 750.  Co-edição Vozes, Paulinas, Loyola, Ave Maria, 1993, p184.

Vaticano II. Mensagens, Discursos, Documentos.  Discurso do Papa João XXIII na abertura do Concílio Vaticano II, 11 de outubro de 1962. São Paulo: Paulinas,1998, p.38.

Vaticano II. Mensagens, Discursos, Documentos.  Discurso do Papa Paulo VI na abertura do segundo período do Vaticano II, 29 de setembro de 1963. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 48.

Idem, ibidem

Papa João Paulo II. Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae. São Paulo: Paulinas, 2002. p 16.

Idem, , p.22.

apa Paulo VI, Evangelii Nuntiandi. Paulinas, SP: 1981, item 48. P

Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos. Diretório sobre a piedade popular e a liturgia, Roma, 2002.

Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes. O Santuário. Memória, Presença e Profecia do Deus Vivo. São Paulo: Paulinas, 1999.p. 11.

Idem, p. 13.

Idem, p. 15.

Cf. Idem, p. 17-23.

Pontificio Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes. Ob. Cit., p. 19.

Idem, p. 21.

Idem, p. 22.

 

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