A ESPERANÇA QUE PREPARA O ENCONTRO COM DEUS
“Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc.12,35)
Depois de ter celebrado a glória e a felicidade dos Santos, no dia 1 de Novembro, dedicamos o dia à oração de sufrágio pelos irmãos que adormeceram na esperança da ressurreição. Tem sido assim ao longo da história. Desde o século II, os cristãos rezavam pelos falecidos, visitando os túmulos dos mártires. No século V, a Igreja dedicava um dia do ano para rezar por todos aqueles que haviam falecido sem família e que muitas vezes não eram lembrados. No século X, o abade de Cluny, santo Odilon, pedia aos monges que orassem pelos mortos. Desde o século XI, os Papas Silvestre II (1009), João XVII (1009) e Leão IX (1015) ordenavam as comunidades cristãs a dedicar um dia aos mortos. No século XIII, esse dia anual passou a ser comemorado no dia 02 de Novembro. E em 1915, o Papa Bento XV, tornou oficial, para toda a Igreja, esta comemoração.
A festa da esperança cristã: a esperança na vida eterna, na vida em Deus! Por isto, a Igreja nos ensina que muito mais do que um dia de tristeza, se trata de um dia celebrativo que alimenta a esperança de um dia estarmos todos reunidos com Deus na plenitude de sua glória. Deste modo vivenciamos a comunhão de todos os fiéis conforme rezamos na Profissão de Fé e nos recorda o Missal Romano: “A Igreja oferece pelos defuntos o sacrifício eucarístico da Páscoa de Cristo, a fim de que, pela mútua comunhão entre todos os membros do Corpo de Cristo, se alcance para uns o auxílio espiritual e para outros consolação e esperança”.
Na Primeira leitura (Jó 19, 1.23-27ª) ouvimos um trecho do diálogo de Jó com seus amigos. De modo semelhante ao que acontece conosco quando tentamos consolar alguém que padece o luto, os amigos de Jó, diante de todo sofrimento experimentado por ele, tentam lhe consolar com palavras superficiais que revelam falta de conhecimento do amor de Deus. Jó, no entanto, revela uma esperança até então desconhecida pelos seus amigos. Na solidão do abandono e próximo a morte, Jó clama e afirma Deus como “redentor”. Conforme os costumes hebreus, toda família possuía um “goel[1]” que traduzindo para nosso idioma seria um “redentor”, isto é, um membro da família que deveria comprometer-se a resgatar o seu familiar em caso de escravidão, de pobreza ou de morte. Assim compreendemos que em um grande salto de fé, Jó enxerga que Deus é o seu último e definitivo defensor. Jó reconhece Deus como seu parente em missão para redimi-lo e resgatá-lo. Ele está vivo e se comprometeu com ele como em um tipo de parentesco com um vínculo indissolúvel. Por isto, afirma com ênfase: “Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão a Deus”.
Na Segunda leitura (1Cor 15,20-24a.25-28) ao escrever para a comunidade cristã de Corinto, o Apóstolo Paulo revela com vigoroso esplendor aquilo que nas palavras de jó foi apenas vislumbrado. O redentor clamado por Jó é na verdade o Filho de Deus, Jesus Cristo. Ele veio em nosso socorro e nos resgatou da desolação da morte para onde nosso pecado havia nos precipitado. Sua ressurreição são as “primícias”, isto é, os primeiros frutos da salvação que Deus planejou para a humanidade. Por isto, pela estrada da vida eterna por onde Cristo passou pela sua obediência e submissão a Deus Pai, todos nós seus discípulos haveremos de passar se o imitarmos na entrega total do dom da vida e da obediência a Deus. A morte veio por um homem: Adão, que rejeitando o projeto divino afastou-se de Deus e trouxe pecado e morte ao mundo (Gn.2,17; 3,19; Rm.5,12-21). O Homem definitivo, Jesus Cristo, ofereceu o sacrifício capaz de destronar o pecado e trazer vida e ressurreição àqueles que creem nele.
No Evangelho (Lc.12,35-40) Jesus, através uma parábola, nos assegura que a vida nesta terra onde nascemos e crescemos se trata de um caminho que percorremos com o desejo de alcançar a meta da comunhão com Deus. Todavia, o percurso é longo, acidentado e por vezes inesperado e até tenebroso. Por isto, é preciso estar bem preparado para o momento do encontro com o Senhor, prontos para lhe abrir a porta do coração. Uma vez que lhe preparamos uma acolhida digna, Ele haverá de entrar e cear conosco afim de saciar nossa fome e sede de vida eterna (Ap. 3,20-22). Os “Rins cingidos e lâmpadas acesas” significam o estado de alerta e de prontidão em que todo o cristão deve permanecer. As advertências feitas por Jesus são justas e necessárias, porque facilmente nos habituamos a rotina da mentalidade mundana, caímos na acomodação e com isso não avançamos, não crescemos e não amadurecemos nossa fé. Todos queremos ter a garantia da vida verdadeira e eterna, mas nem sempre queremos fazer o que é necessário para que isto ocorra em nossa existência. E assim vivemos como aquele jovem rico que almeja a vida eterna, mas não soube ser livre para seguir a Cristo (Cf.: Mt. 19,16-30; Mc. 10,17-31 Lc.18,18-30). Permanecer em estado de espera e alerta nos ajudará a manter viva a certeza de que o caminho que percorremos neste mundo não termina com o fracasso da morte, mas no encontro com a vida plena em Cristo Jesus. As palavras de Jesus são também hoje um chamado a viver com lucidez e responsabilidade, sem cair no sono do pecado que pode impedir de contemplar a Senhor que vem ao nosso encontro.
Embora aparentemente a pandemia esteja ficando para trás, não podemos negar que vivemos ainda sob a sombra do luto provocado por ela. Se trata de um luto atrelado ao ressentimento e arrependimento por diversas situações que a própria pandemia nos impôs. Não é apenas luto pela morte. É o luto por causa dos ritos exequiais que não celebramos nem vivemos. É o luto pelo último olhar no rosto amado que o caixão vedado impediu, pelas palavras que não pudemos falar por causa da morte repentina, pelas homenagens que não pudemos prestar, pelos abraços que não pudemos dar e cujo calor humano teria nos ajudado a consolar-nos reciprocamente.
No entanto, não podemos ficar sentados nas cinzas do luto. Como cristãos necessitamos dar um significado pascal a esta espécie de morte pandêmica, injusta e clandestina. As duas celebrações que realizamos nestes dias, a Solenidade de Todos os Santos e a Comemoração de todos os fiéis defuntos nos recordam que somente quem pode reconhecer uma grande esperança na morte, pode também levar uma vida a partir da esperança. Jesus Cristo ampara-nos porque é o Bom Pastor. Nele e no seu caminho podemos confiar sem qualquer temor, porque Ele conhece bem a estrada que conduz ao Pai.
Neste dia em que fazemos memória dos fiéis defuntos, que acreditamos estarem vivendo sua comunhão eterna com Deus, dedicamo-nos à oração e à reflexão sobre o mistério da morte e ressurreição. A cada domingo, ao recitar o Credo, nós confirmamos esta verdade. Hoje, visitando os cemitérios para rezar com saudade, afeto e amor pelos nossos falecidos, somos convidados, mais uma vez, a renovar nossa fé na vida eterna, e também testemunhá-la com esperança ao mundo. E é precisamente a fé na vida eterna que oferece aos cristãos a coragem de se manter preparado para acolher a Deus, não como um estranho desconhecido que bate a nossa porta na escuridão tenebrosa da noite, mas como nosso Redentor. Por isto, tenhamos a certeza: não é hora de cair no desânimo da letargia espiritual. Pois “já é hora de despertar do sono. Agora, a salvação está mais perto de nós do que quando abraçamos a fé”. (Rm.13,11).
Pe. Paulo Sérgio Silva
Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Farias Brito.
[1] Goel (O Go’el HaDahm) do hebraico “redimir/redentor” termo pelo qual a Bíblia hebraica e a tradição rabínica denotam um parente relativo que possui como missão restaurar os direitos perdidos por uma pessoa próxima. No Livro do Profeta Isaías, Deus é chamado de Redentor de Israel. Deus é aquele que redime pessoas cativas em circunstâncias grandiosas. Sendo o Goel/redentor aquele que toma por responsabilidade assumir à culpa ou pagar e resgatar uma mulher de seu parente próximo. No Novo Testamento é associado a Jesus Cristo, que ao dar a própria a vida pelos nossos pecados, pagou um alto preço pela humanidade; resgatando-a e trazendo-a novamente para junto de Deus.