Renovação: um ato ao Divino Coração

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“A nós descei, Divina Luz
A nós descei, Divina Luz
Em nossas almas acendei
O amor, o amor de Jesus!
Em nossas almas acendei
O amor, o amor de Jesus!”

Não consigo ler esta estrofe sem que a minha mente possa cantá-la ou meu coração possa ‘ouvir’ o entoar desta cantiga nas vozes agudas das mulheres de fé do interior do meu Nordeste.

‘Renovação’. Aprendi o significado desta palavra muito cedo, pois desde muito criança era levado às ‘rezas’, que são uma espécie de festa promovida todos os anos pelo chefe de uma família em homenagem ao Sagrado coração de Jesus.

Embora hodiernamente esta tradição tenha caído no esquecimento de muitas famílias, no meu Mauriti, interiorzinho do Ceará, ela ainda resiste como tradição em muitas famílias.

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, amparada pela promessa dEle a santa Margarida Maria de que “a minha bênção permanecerá sobre as casas em que se achar exposta e venerada a imagem de meu Sagrado Coração”, findou por tornar-se algo quase que obrigatório nas casas nordestinas.

Entra-se na sala, seja em casa humilde ou seja em casa apalaceada, nota-se a imagem deste Santíssimo Coração em uma parede. Esse gesto é uma forma de exteriorizar que Jesus é o rei e que os corações dos familiares que ali habitam são inteiramente consagrados a Ele.

As renovações nascem desta entrega e do desejo de renová-la a cada ano, para que nunca se esqueçam das promessas de amor que fizeram ao tão amado Coração Divino.

Na casa que pertenceu a minha trisavó, por vias maternas, todos os anos, em 5 de fevereiro, dia de Santa Águeda, há mais de 100 anos, a família se reúne para renovar a entrega daquele lar e da família a este coração que por amor se entregou por todos nós.

Entre a minha trisavó e eu já passaram cinco gerações e esse antigo costume ainda resiste ao poderoso Cronos. O dia da ‘reza’ começa com o raiar do sol, quando os homens se juntam para matar porco, galinhas e outros animais, para iniciar o preparo do jantar que saciará todas a pessoas que vierem participar do solene ato da renovação.

De um lado, algumas mulheres limpam os miúdos dos animais; de outro, outras senhoras moem as carnes que serão utilizadas em um dos mais famosos e apreciados quitutes das renovações: as ‘bolinhas de carne cobertas’. São simplesmente bolinhas de carne moída temperadas com especiarias como pimenta preta, cominho, alho, e etc, empanadas em uma massa preparada de ovos em castelo, especiarias e farinha de trigo.

Isso sem falar nos caldeirões de vatapá, salada de batatas (também denominada maionese), macarrão, galinha caipira, guiné (galinha de angola) entre outros, que irão saciar a fome dos convidados. O dia decorre com muito trabalho e logo o meigo entardecer vai cedendo espaço para as estrelas e para a pálida lua que, qual disco de prata, vai iluminando o terreiro da casa, enquanto pouco a pouco vão chegando os familiares e os amigos convidados.

Às 19h, com todos reunidos na sala de estar, a ‘mesa dos santos’ devidamente preparada e ornada com flores, é iluminada por um par de velas suspenso em castiçal de louça antigo. O ‘tirador’ da renovação inicia saudando a Trindade Santa; e logo em seguida as mulheres, com suas vozes agudas, começam a cantar pedindo ao Espírito que desça sobre aquele lugar: “A nós descei, divina luz, a nós descei, divina luz, e em nossas almas acendei o amor de Jesus…”

Por Carlos Gabriel Monteiro Pereira

Nota

Renovação: ato de renovar a consagração do lar ao Sagrado Coração de Jesus;

Rezas : no texto são usadas como sinônimo de  renovação;

Apalaceada: que se assemelha a um palácio;

Santa Águeda: santa Católica Virgem e mártir dos primeiros séculos do Cristianismo;

Cronos: palavra designada, na antiga mitologia grega, para se referir ao tempo;

Guiné: ave da família da galinha também chamada de Galinha-de-Angola ou Tô-fraco;

Mesa dos Santos: mesinha, semelhante a um aparador, muito comum nas casas nordestinas, onde se coloca uma imagem de um santo, velas e flores. Geralmente é coberta por uma tolha de renda ou passarela de mesa bordada;

Terreiro: pedaço de terra que circunda as casas da roça, geralmente onde estão plantadas arvores frutíferas. Em algumas regiões também são denominados quintais.

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